Um “Everest” de Dívidas: o caso de São Leopoldo

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É amplamente reconhecido que setores da esquerda teórica e política tendem a relativizar os limites da restrição orçamentária do governo, defendendo a ampliação dos gastos públicos, bem como o endividamento, como instrumentos legítimos para fortalecer o papel do Estado na economia e promover o bem-estar social. Essa perspectiva sustenta que déficits fiscais são aceitáveis — ou até desejáveis — desde que destinados à expansão dos investimentos e à implementação de políticas públicas estruturantes.

Após 16 anos de sucessivas administrações alinhadas a essa orientação, a realidade fiscal do Município de São Leopoldo evidencia os riscos associados a tal abordagem. A ausência de mecanismos eficazes de controle da dívida pública, somada à expansão das operações de crédito, revela um padrão que relegou o equilíbrio fiscal de longo prazo.

Nesse cenário, o presente texto tem por objetivo sistematizar as informações sobre o endividamento municipal, analisar seu perfil e apresentar indicadores essenciais à formulação de uma política fiscal mais responsável e sustentável, pautada na transparência e no rigor da gestão da dívida pública.

Durante o período de transição em 2024, a equipe do atual Prefeito reiterou a necessidade de acesso a dados sobre o grau de endividamento de São Leopoldo e os instrumentos de controle existentes. No entanto, essas informações não foram fornecidas pela gestão anterior, o que impôs sérias limitações ao planejamento inicial da nova administração. A ausência desses dados comprometeu a elaboração de um diagnóstico fiscal preciso, atrasando a definição de medidas corretivas e o reperfilamento da dívida.

A nova gestão iniciou seu mandato com o orçamento de 2025 já comprometido em R$ 276,4 milhões, valor referente a obrigações assumidas com fornecedores e dívidas de curto prazo. Diante desse cenário, tornou-se imprescindível renegociar e quitar passivos deixados pela administração anterior, incluindo valores expressivos devidos a diversos prestadores de serviços — com destaque para os débitos acumulados junto a entidades da área da saúde.

Somavam-se a esse quadro parcelamentos históricos com o Instituto de Previdência (IAPS), sucessivamente postergados por gestões anteriores, que totalizam atualmente R$ 227,6 milhões. A superação desses passivos e a adoção de medidas de ajuste estrutural são etapas cruciais para restaurar a capacidade fiscal do Município e garantir a continuidade dos serviços públicos essenciais.

Já em janeiro de 2025, uma das principais fragilidades identificadas foi a ausência de um controle sistematizado do endividamento municipal, sobretudo no que diz respeito à organização individualizada das operações de crédito vincendas. Até então, não havia planilhas estruturadas que permitissem o acompanhamento detalhado de cada contrato, o que dificultava a visualização precisa dos fluxos de pagamento de juros, amortizações e do serviço da dívida ao longo do tempo.

Iniciou-se, então, a consolidação dessas informações — etapa fundamental para viabilizar análises mais robustas, como o cálculo da duration do cronograma de pagamentos, indicador essencial para avaliar o perfil de alongamento ou concentração da dívida ao longo do tempo. Esse processo também passou a subsidiar decisões voltadas à reestruturação dos passivos municipais, com foco na melhoria da sustentabilidade fiscal e no aprimoramento do planejamento de médio e longo prazo.

Foram elaboradas planilhas individualizadas das principais operações de crédito da Prefeitura, reunindo e organizando todas as informações disponíveis com o objetivo de evidenciar o endividamento decorrente de contratos firmados com instituições financeiras oficiais, especialmente com o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ao todo, foram identificados 17 contratos de operações de crédito, conforme o resumo apresentado a seguir.


Tabela 1 - Operações de crédito com instituições financeiras oficiais
Operação Valor Financiado Data Inicial Data Final Prazo (meses) Carência (meses) Parcelas de Amortização Index Taxa de Juros a.a. Indexador Custo Total Projetado
OBRAS - JOAO CORREA R$ 14.040.000 07/03/2008 08/10/2029 259 19 240 TR 6,00% 0,00% R$ 30.881.675
Pró-Moradia - Arroio Manteiga e Cerquinha R$ 38.000.000 07/06/2008 08/01/2031 271 31 240 TR 5,00% 0,00% R$ 76.414.308
OBRAS - Diversas Ruas R$ 29.355.000 07/10/2010 08/08/2033 274 34 240 TR 6,00% 0,00% R$ 63.377.439
FINISA I - 5M (obras SEMOV) R$ 5.000.000 07/09/2019 07/09/2029 120 12 108 SELIC 5,50% 100% CDI R$ 8.762.560
FINISA II - 20M (Obras) R$ 20.000.000 07/07/2020 08/07/2030 120 12 108 SELIC 5,50% 100% CDI R$ 34.610.918
FINISA III - 20M (Pavimentação e Drenagem) R$ 20.000.000 07/12/2021 08/12/2031 120 24 96 SELIC 3,55% 100% CDI R$ 33.602.978
FINISA III - 10M (Modernização Administrativa) R$ 10.000.000 07/12/2021 08/12/2031 120 24 96 SELIC 3,55% 100% CDI R$ 16.375.819
FINISA V - 30M (Independência) R$ 30.000.000 07/05/2022 08/05/2032 120 24 96 SELIC 0,00% 128,91% CDI R$ 53.033.595
FINISA VI - Obras e TIC R$ 15.000.000 07/06/2022 08/03/2033 129 33 96 SELIC 0,00% 129,51% CDI R$ 26.108.062
Sede da SEMUSP* R$ 7.000.000 20/09/2022 20/09/2029 84 36 48 SELIC 5,00% 100% CDI R$ 9.950.387
FINISA VII - 10M (Patrimônio Histórico) R$ 10.000.000 07/03/2023 08/03/2033 120 24 96 SELIC 0,00% 133,93% CDI R$ 19.090.488
FINISA - ADUTORA SEMAE R$ 24.000.000 07/03/2023 07/09/2033 126 30 96 SELIC 0,00% 133,93% CDI R$ 45.243.592
FINISA IX - 50M (Pavimentação e Drenagem) R$ 50.000.000 07/06/2023 07/06/2033 120 24 96 SELIC 0,00% 135,41% CDI R$ 90.932.144
BB - Barco Escola R$ 2.903.150 10/09/2023 10/09/2033 120 12 108 SELIC 0,00% 178% CDI R$ 6.519.321
BB - 80M (Despesas de Capital) R$ 80.000.000 10/08/2024 11/08/2036 144 24 120 SELIC 6,61% 100% CDI R$ 159.194.839
Programa BRDE - Investimentos R$ 25.000.000 15/04/2025 16/05/2035 121 36 84 SELIC 5,52% 100% CDI R$ 48.506.782
PAC - Ônibus Elétricos R$ 15.600.000 07/07/2026 08/07/2046 240 6 234 TR 6,00% 0,00% CDI R$ 31.706.950
Fonte de dados brutos – Secretaria Municipal da Fazenda. Cálculos do autor.


Procurou-se avaliar o grau de endividamento da Prefeitura de São Leopoldo, com ênfase em dois indicadores amplamente utilizados na análise do perfil e da sustentabilidade da dívida pública: o Average Time to Maturity (ATM) e a duration.

O ATM representa o prazo médio até o vencimento das amortizações contratuais, com base no cronograma nominal de pagamentos e desconsiderando o valor presente dos fluxos. Esse indicador permite identificar a concentração de vencimentos ao longo do tempo, funcionando como um sinalizador do risco de refinanciamento.

A duration, por sua vez, corresponde ao prazo médio ponderado da dívida, considerando o valor presente de todos os fluxos futuros — juros e amortizações. Trata-se de uma medida fundamental para avaliar a sensibilidade do endividamento a variações nas taxas de juros, refletindo o risco associado ao seu custo.

Enquanto o ATM revela o grau de espaçamento dos vencimentos, a duration permite estimar o impacto financeiro de oscilações nas condições de mercado. Juntos, esses indicadores oferecem uma visão complementar, essencial à formulação de estratégias de gestão da dívida orientadas à mitigação de riscos e à sustentabilidade fiscal.

No caso da Prefeitura, a duration estimada em 3,28 anos indica que os fluxos de pagamento — juros e amortizações — se concentram, em média, nesse intervalo, evidenciando maior exposição no curto prazo e maior sensibilidade a oscilações nas taxas de juros. Já o ATM, calculado em 4,18 anos, sugere que os vencimentos estão relativamente bem distribuídos, o que contribui para reduzir o risco de refinanciamento imediato.

Esse diagnóstico é reforçado pelo fato de que, conforme demonstrado na Tabela 2, o saldo devedor da dívida municipal, que em 2024 era de R$ 455,7 milhões, cai para R$ 152,0 milhões já em 2029 — uma redução de R$ 303,7 milhões em apenas quatro anos. Esse montante representa aproximadamente dois terços do estoque inicial da dívida, evidenciando uma forte concentração de pagamentos no início do cronograma e acentuando os desafios fiscais no curto e médio prazos.

Essa configuração revela um perfil de endividamento com certo fôlego no médio prazo, mas que demanda atenção quanto à gestão do custo da dívida. A concentração de pagamentos em um horizonte de quatro anos exige margens fiscais adequadas para absorver esses compromissos sem comprometer a continuidade da prestação de serviços públicos essenciais.

Adicionalmente, a existência de contratos com diferentes indexadores — como TR, CDI e Selic —, aliada à ausência de mecanismos de proteção cambial ou políticas ativas de renegociação, amplia a vulnerabilidade da dívida a choques macroeconômicos, especialmente em cenários de alta de juros ou queda na arrecadação municipal.


Tabela 2 - Cronograma projetado de amortização, encargos e indicadores da dívida
Exercício Amortização Juros Prestação Saldo Devedor Duration ATM
2024 0 13.954.631 23.249.485 R$ 37.204.116 455.730.565
2025 1 22.293.419 36.646.309 R$ 58.939.728 396.790.837 0,09 0,07
2026 2 30.076.833 35.087.765 R$ 65.164.598 331.626.240 0,21 0,18
2027 3 35.020.697 30.100.927 R$ 65.121.624 266.504.616 0,31 0,32
2028 4 35.313.332 24.869.247 R$ 60.182.578 206.322.037 0,38 0,43
2029 5 34.600.684 19.630.881 R$ 54.231.565 152.090.472 0,43 0,52
2030 6 31.474.914 14.744.836 R$ 46.219.750 105.870.722 0,44 0,57
2031 7 27.086.722 10.320.935 R$ 37.407.657 68.463.065 0,42 0,57
2032 8 20.968.821 6.505.329 R$ 27.474.150 40.988.916 0,35 0,51
2033 9 12.661.371 3.740.654 R$ 16.402.025 24.586.890 0,23 0,34
2034 10 8.000.000 2.418.525 R$ 10.418.525 14.168.365 0,17 0,24
2035 11 8.000.000 1.280.396 R$ 9.280.396 4.887.970 0,16 0,27
2036 12 4.666.667 221.303 R$ 4.887.970 0 0,09 0,17
2037 13
R$ - 0
TOTAL 284.118.089 208.816.592 R$ 492.934.682
3,28 4,18
Fonte de dados brutos – Secretaria Municipal da Fazenda.

O Gráfico 1 abaixo apresenta a distribuição temporal das obrigações financeiras da Prefeitura de São Leopoldo, evidenciando a complexidade e os desafios inerentes à gestão do endividamento municipal. A análise combinada dos indicadores acima mencionados revela um perfil que demanda atenção especial quanto à sensibilidade da dívida às taxas de juros e ao risco de refinanciamento no médio prazo.

Diante desse cenário, torna-se imprescindível a adoção de uma abordagem estratégica para o gerenciamento da dívida pública municipal, com ações voltadas ao monitoramento sistemático do serviço da dívida, à revisão de contratos mais onerosos, à ampliação da transparência das condições de financiamento e à integração das projeções de endividamento ao planejamento orçamentário plurianual. A consolidação dessas práticas permitirá ao Município mitigar riscos fiscais, preservar sua capacidade de investimento e assegurar uma trajetória sustentável de equilíbrio financeiro.

Considerações finais

A dinâmica da dívida evidenciada no Gráfico 1 revela uma acentuada concentração de despesas com o serviço da dívida entre os anos de 2025 e 2028, período correspondente à atual gestão municipal. Essa configuração caracteriza um verdadeiro “Everest” de vencimentos, que compromete de forma significativa a condução da política fiscal no curto e médio prazos.

Tal cenário reforça a urgência de medidas preventivas voltadas à mitigação do risco de refinanciamento, bem como à preservação da continuidade dos serviços públicos essenciais, sem comprometer a estabilidade fiscal do Município. Nesse contexto, o caminho mais adequado consiste na adoção de um plano de reperfilamento das dívidas vigentes com os bancos oficiais, com vistas a redistribuir os pagamentos ao longo de um horizonte mais longo, aliviando a pressão sobre o fluxo de caixa no período de maior concentração.

Importa destacar que o reperfilamento refere-se à renegociação das condições de prazo da dívida, sem alteração substancial do valor total contratado, enquanto a reestruturação envolve renegociações mais amplas, podendo incluir descontos, alterações de indexadores ou mesmo repactuações com impacto fiscal mais profundo. No presente caso, o reperfilamento surge como estratégia preferencial, por preservar a integridade dos contratos existentes, ao mesmo tempo em que promove o alongamento do cronograma de pagamentos, contribuindo para a sustentabilidade da dívida e a previsibilidade da gestão fiscal.

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