Mais uma década de austeridade: o RRF e a expansão da dívida

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Os dois últimos governadores do RS defenderam a ideia de que o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) é o caminho viável para o ajuste das finanças estaduais, visto que é o único instrumento legal aceito pela União para os governos subnacionais cronicamente endividados.

Após quatro anos e meio de discussões com a União, o governador Leite  encaminhou ao Tesouro Nacional o pedido de adesão ao regime,  prevendo uma “década de desafios para o Estado”. O Conselho de Estado, composto por Chefes de Poderes, tratou essa adesão com otimismo, como “um remédio amargo, mas necessário” (Zero Hora, Rosane de Oliveira, 28/12/21). Segundo a colunista, o Presidente da Assembleia Legislativa, Gabriel Souza, era o mais entusiasta, pois considerou que “adesão ao regime não é uma camisa de força nem um bicho de sete cabeças”. Mais uma vez, o governador obteve a aceitação de suas postulações, ficando apenas a oposição sustentando os riscos inerentes à adesão.

Todo o otimismo dos Chefes de Poderes advém do fato de acreditarem no ajuste fiscal sem fim, secundarizando os custos relativos aos anos de austeridade e à expansão da dívida. Para eles, a adesão ao novo regime não seria uma solução ao problema do endividamento estadual, sendo a alternativa possível para equilibrar as finanças estaduais mediante o ganho de fluxo de caixa, garantindo o mínimo de governabilidade na década vindoura.

Em minha opinião, os estados cronicamente endividados  (Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, os quais pretendem assinar o RRF, assumirão compromissos pesados, tendo que gerar primários positivos e manter o congelamento real das despesas obrigatórias. Com isso, a condução da política fiscal será marcada pela austeridade permanente, ficando comprometida a efetividade das políticas sociais, bem como a qualidade do serviço público ao longo da próxima década. A acumulação de dívida exigirá mais e mais sacrifícios para o equacionamento do desequilíbrio fiscal, devendo o estado devedor honrar com as prestações da dívida.

No caso gaúcho, como os gastos primários estarão contidos pelo teto de gastos e pelas demais medidas de contenção de pessoal e custeio da máquina pública, a variável de ajuste será a busca da expansão da arrecadação tributária. A venda do Banrisul será inevitável, segundo o próprio governador — este ativo estadual poderia abater parte da dívida com a União.

As hipóteses para a manutenção da austeridade fiscal também consideram que as demandas por bens públicos estarão congeladas em termos reais — repito ao longo da próxima década —, os servidores estaduais ficarão passivos esperando por reajustes anuais, e que as novas operações de crédito (precatórios) não impactarão o crescimento da dívida não refinanciada. Qualquer risco de alguma pandemia ou despesas extraordinárias não poderão afetar o teto de gastos.

Convém lembrar que o governo estadual é supervisionado pela União desde o Acordo de Refinanciamento da Dívida, assinado em abril de 1998. Desde lá, o RS pagou o serviço da dívida até 2017, suspendeu o pagamento das prestações por incapacidade financeira entre os anos de  2017 e 2021, utilizando-se de liminares junto ao Supremo Tribunal Federal. Se for aceita sua inclusão no regime, haverá um ano de carência e o pagamento escalonado do serviço da dívida por 9 anos. Na prática, haverá o crescimento do saldo devedor da dívida ao longo da década e o consequente aumento do seu valor presente.

 Historicamente, as finanças estaduais apresentam uma situação objetiva de acumulação de dívida e falta de geração de poupança primária sustentável. Por isso, vários governos foram obrigados a recorrer ao expediente da elevação do ICMS e a usar os recursos disponíveis do Caixa Único. 

O principal problema da sustentabilidade econômico-financeira do governo estadual está relacionado aos desequilíbrios de fluxo e de estoque, os quais exigem um esforço fiscal continuado e sem uma previsão de término. Os desequilíbrios de fluxo se referem à falta de geração de superávits primários, tendo em vista o crescimento dos gastos previdenciários e o baixo nível de investimento público usado como variável de ajuste.

Com relação ao desequilíbrio de estoque (dívida, precatórios), o endividamento tem como núcleo o contrato da Lei n.º 9.496/1997, cuja expansão crescerá, no mínimo, a taxa Selic. Ainda que a União, mediante a Lei Complementar n.º 148/2014, tenha alterado as condições financeiras dos acordos de refinanciamento, reduzindo a taxa de juros e trocado o indexador, os encargos financeiros requeridos nesse contrato exigem um esforço fiscal que não dará garantia para o equilíbrio orçamentário.

Para dar indicativos de tal afirmação, basta observar a trajetória da dívida fundada, como proporção do PIB, desde 1970 (ver Gráficos). De outra parte, o resultado primário, que é a poupança não financeira para pagar a dívida, tem uma trajetória, historicamente, deficitária. Ora, todo o Plano de adesão, a ser proposto pelo governo Leite, terá como condição necessária a geração de superávits positivos, sendo que estes deverão ser suficientes para saldar os compromissos com a dívida e manter o equilíbrio orçamentário. Toda essa engenharia financeira irá para além de 2050.

Observando-se as estatísticas do Banco Central, que medem o endividamento líquido dos governos estaduais através do critério abaixo da linha, percebe-se, novamente, a trajetória crescente da dívida líquida gaúcha  (R$ 104,5 bilhões em jun.21), os resultados primários insuficientes e as incorporações de juros nominais ao montante da dívida. Os montantes de endividamento dos Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro ajudam na comparação.

A União tem sido beneficiária do endividamento subnacional, ao manter os encargos cobrados sobre a dívida refinanciada dos governos subnacionais próximos à sua taxa de captação de seus títulos públicos em mercado. Como a União é credora desses haveres financeiros, ela depende da entrada de receitas para cobrir os custos de captação dos títulos rolados no mercado. As receitas advindas dos entes subnacionais são fontes de recurso orçamentário para a redução da rolagem da dívida mobiliária da União. Qualquer risco de resgate de governos insolventes implicaria o afastamento de investidores privados e a perda de credibilidade junto ao mercado primário quanto à colocação dos títulos federais.

Toda a modelagem para defesa da adesão ao RRF é digna de uma moderna tecnocracia, de um PowerPoint bem elaborado, e de um governador de olho na eleição presidencial de 2026. Não é necessário gastar muito neurônio para descobrir que o Plano do RRF insistirá na velha compressão do gasto público, agora efetivada ao limite do possível. Provavelmente, isso não representará nenhum “bicho de sete cabeças”, já que o RS já vem perdendo posições frente aos demais estados da Federação, tem deteriorado continuamente sua infraestrutura pública e, até lá, não terá mais estatais para privatizar.

Para os demais Poderes, o sacrifício será até o limite para não reduzirem seus orçamentos com  pessoal e a expansão do investimento. As camadas privilegiadas do serviço público encontrarão soluções criativas para as futuras contenções orçamentárias (autonomia administrativa e financeira, verbas indenizatórias, gratificações de substituição, honorários advocatícios, auxílio-saúde, por exemplo). Na prática, o teto remuneratório do setor público não atinge plenamente as carreiras jurídicas, o que nos remete à Reforma Administrativa.

O Poder Executivo demandará mais sacrifício do funcionalismo e  proporá mais cortes nas demais despesas primárias. Isso, a rigor, também não representará nenhuma novidade, pois os últimos governos têm assumido a mesma agenda fiscal: contingenciamento orçamentário, controle de cotas por órgãos, controles de pessoal e custeio etc.

Ainda que as evidências empíricas indiquem uma evolução da dívida fundada e uma geração insuficiente de primários positivos, o otimismo para alguns parece um ato de fé. Para outros, é o reconhecimento de que o resultado primário é um fim em si mesmo. Presos a uma análise de fluxos, desconsideram a sustentabilidade fiscal como um instrumento objetivo à análise do endividamento público. Entre “mortos e feridos” no médio prazo, o mais importante é gerar poupança não financeira para garantir o serviço da dívida, estabilizando a relação dívida/PIB.

Ao contrário, entendo que é preciso muita cautela para evitar os equívocos cometidos pelo Estado e pela União no Acordo da Dívida de 1998. Seria uma grande medida de transparência fiscal dos órgãos estaduais divulgarem os cálculos relativos aos requisitos da sustentabilidade fiscal que embasam a adesão ao RRF. A Emenda Constitucional n.º 109/2021, de 15/03/2021, determina que os governos subnacionais conduzirão suas políticas fiscais para manter a dívida pública em níveis que assegurem sua sustentabilidade. Observa, ainda, que a elaboração e a execução de planos e dos orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais (acima da linha) com a sustentabilidade da dívida (abaixo da linha). Em qual técnica econométrica (ou determinística) de projeção orçamentária e de sustentabilidade fiscal, tecnicamente minuciosa, se embasa  a referida defesa do RRF?

Concluindo, a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal significa reconhecer que reduzir o fluxo presente das prestações, comprometendo suas parcelas futuras, nunca será uma alternativa ótima e indolor para equacionar um esquema de acumulação de dívida.

Ainda que não seja uma boa prática macroeconômica a de resgatar entes subnacionais com risco de insolvência ou cronicamente endividados, é forçoso reconhecer que o custo do ajuste fiscal seria atenuado se houvesse a concessão de novos descontos sobre o saldo devedor como o realizado em 2016 (uma espécie de haircut), entrega de ativos estaduais, seguido de regras punitivas para gestores estaduais que forçarem a expansão do endividamento público. 

Tal situação crônica tem paralisado, por décadas, o desenvolvimento do Poder Público Estadual. Alguns governos subnacionais  ficaram (e ficarão), ao longo de mais de 50 anos (1998-2052), reféns do contrato de refinanciamento da dívida, obrigados a gerar continuamente poupança primária para saldar um passivo que teve sua origem, em boa medida, na implantação do Plano Real em 1994.

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