Um modelo teórico de ajuste fiscal subnacional

 

Introdução

Este estudo revisa o modelo dinâmico de ajuste fiscal de Calazans (2021) para oferecer uma base teórica à identidade de equilíbrio orçamentário de um governo subnacional. O modelo busca estabilizar a relação entre a Dívida Consolidada Líquida (DCL) e a Receita Corrente Líquida (RCL), um dos principais indicadores monitorados pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Para tanto, são formuladas hipóteses sobre os diversos parâmetros do modelo, utilizando a RCL como proxy da receita primária, embora esta seja maior em montante.

As necessidades de financiamento do tesouro subnacional englobam o déficit primário (com sinal invertido) e os juros e encargos da dívida, deduzindo-se as receitas financeiras e a amortização de empréstimos. Adicionalmente, incluem-se a amortização da dívida e a concessão de novos empréstimos, compondo assim as necessidades de financiamento bruto. Posteriormente, são subtraídas as fontes de financiamento, que consistem na captação de recursos internos e externos (operações de crédito) e nas receitas extraordinárias provenientes da alienação de bens.

O sinal do saldo primário é invertido: negativo para superávit e positivo para déficit. As receitas financeiras também apresentam sinal negativo, pois reduzem as necessidades de financiamento. Em contrapartida, as despesas relacionadas ao serviço da dívida (amortização, juros e encargos) e as despesas financeiras (concessão de empréstimos) têm sinal positivo, pois aumentam essas necessidades. As operações de crédito e a alienação de bens, que são fontes de financiamento do déficit público, são deduzidas das necessidades de financiamento bruto, ajudando a medir o resultado orçamentário ou a deficiência financeira.

A deficiência financeira, ao final do exercício, é representada da seguinte forma:

  • Necessidades de Financiamento Bruto = Déficit
    Primário + Juros da Dívida – Receitas Financeiras + Amortização da Dívida + Concessão de Empréstimos
  • Atraso ou Deficiência Financeira = Necessidades de Financiamento Bruto – Operações de Crédito – Alienação de Bens

1. Variação da dívida

Pela ótica do financiamento, a variação da DCL pode ser decomposta em cinco partes constituintes: juros e encargos, capitalização dos juros não pagos (se houver), atualização monetária, operações de crédito e amortização. Os juros e encargos não estão incluídos na expressão abaixo, pois são acrescidos ao saldo devedor e pagos (fluxo anual), sendo anulados em ambos os lados da identidade. A amortização da dívida, \(A_t\), é subtraída, pois o pagamento reduz a dívida total.

Seja \(D_t\) a dívida líquida em \(t\), e sua variação assim definida:

\[
D_t - D_{t-1} = CJ_t + AM_t + OC_t - A_t
\]

onde:

  • \(D_t\) = dívida consolidada líquida;
  • \(CJ_t\) = capitalização de juros não pagos, se houver;
  • \(AM_t\) = atualização monetária;
  • \(OC_t\) = operações de crédito;
  • \(A_t\) = amortização da dívida.

Do ponto de vista financeiro, a equação geral da restrição orçamentária que inclui a amortização evidencia as necessidades de financiamento do governo subnacional, representando um compromisso a ser cumprido e compondo o fluxo total de saídas de caixa.

\[
D_t - D_{t-1} = (G_t - RCL_t) + (J_t - F_t) + A_t
\]

onde:

  • \(RCL_t\) = receitas primárias;
  • \(G_t\) = despesas primárias;
  • \(J_t\) = juros e encargos da dívida;
  • \(F_t\) = receitas financeiras mais amortização de empréstimos menos concessão de empréstimos;
  • \(J_t - F_t\) = juros líquidos da dívida;
  • \(A_t\) = amortização da dívida.

2. Restrição orçamentária do Tesouro

Pela ótica da dinâmica da dívida, no cálculo da variação líquida simplificada, as amortizações são subtraídas, pois não geram nova dívida, mas apenas reduzem o montante existente. O foco está na acumulação líquida da dívida ao longo do tempo.

\[
D_t - D_{t-1} = (G_t - RCL_t) + (J_t - F_t)
\tag{1}
\]

No lado esquerdo da equação, tem-se a perspectiva do financiamento,representada pela variação da dívida líquida \(D_t\), excluindo-se a dívida mobiliária, cuja emissão é proibida para os entes subnacionais. No lado direito, temos as necessidades operacionais do governo subnacional, compostas pelo déficit primário, denotadas por \(G_t> RCL_t\) e por \(X_t = G_t -
RCL_t\)
, acrescidas de juros líquidos \(J_t – F_t\). Para simplificar, assume-se que os juros e encargos líquidos são representados por \(J_t - F_t\), denotados daqui em diante apenas como \(J_t\), e que a receita \(RCL_t\) é utilizada como uma aproximação da receita primária. Assim, temos:

\[
J_t = i \cdot D_{t-1}
\tag{2}
\]

onde \(i\) representa a taxa de juros nominal, sendo \(i > 0\).

A amortização \(A_t\) é definida como:

\[
A_t = \phi \cdot D_{t-1}
\tag{3}
\]

onde \(\phi\) é a taxa de atualização monetária e outros encargos incidentes sobre a dívida.

Substituindo essas expressões na equação da restrição orçamentária, temos:

\[
D_t - D_{t-1} = (G_t - RCL_t) + i \cdot D_{t-1} + \phi \cdot D_{t-1}
\tag{4}
\]

Esta equação pode ser reformulada de maneira recursiva, capturando a dinâmica intertemporal das variáveis. A evolução da dívida pública ao longo do tempo pode ser observada, com a dívida acumulando-se ou sendo reduzida em função das políticas fiscais adotadas:

\[
D_t = (1 + i + \phi) \cdot D_{t-1} + (G_t - RCL_t)
\tag{5}
\]

Essa equação recursiva mostra como a dívida no período \(t\) é uma função da dívida do período anterior \(t - 1\), acrescida dos encargos financeiros (juros e atualização monetária) e do déficit primário \(G_t - RCL_t\). Isso permite uma análise dinâmica da dívida ao longo do tempo, incorporando os efeitos acumulados das variáveis relevantes.

Expandindo para dois períodos:

\[
D_{t+1} = (1 + i + \phi)^2 \cdot D_{t+1} + (1 + i + \phi) \cdot (G_{t-1}
- RCL_{t+1}) + (G_t - RCL_t)
\]

Essa expressão mostra como a dívida no período \(t+1\) é influenciada pela dívida dos períodos anteriores, além dos encargos financeiros e déficits primários acumulados.

3. Condição de estabilização da dívida

Para estabilizar a dívida, a condição necessária é que a variação da dívida seja nula, ou seja:

\[
D_t - D_{t-1} = 0 \tag{6}
\]

Assim, temos:

\[
0 = (G_t - RCL_t) + i \cdot D_{t-1} + \phi \cdot D_{t-1} \tag{7}
\]

Rearranjando a equação para isolar \(G_t\), temos:

\[
G_t = RCL_t - (i + \phi) \cdot D_{t-1}
\tag{8}
\]

Desta forma, o gasto primário pode ser expresso como uma função da receita primária \(RCL_t\) e da dívida consolidada líquida \(D_{t-1}\), considerando as taxas de juros \(i\) e atualização monetária \(\phi\). 4. Resultado primário necessário para estabilizar a dívida

Para determinar o resultado primário necessário para estabilizar a dívida, partimos da relação de estabilização onde a variação da dívida \(\Delta D_t\) é nula. Isso implica que:

\[
D_t - D_{t-1} = 0 \tag{9}
\]

Sabendo que o resultado primário \(X_t\) é dado por:

\[
X_t = RCL_t - G_t
\tag{10}
\]

Substituindo a expressão de \(G_t\) na equação do resultado primário:

\[
X_t = RCL_t - \left[RCL_t - (i + \phi) \cdot D_t \right]
\tag{11}
\]

Ao simplificar essa expressão, conclui-se que o resultado primário necessário para estabilizar a dívida é equivalente aos encargos totais da dívida:

\[
X_t = (i + \phi) \cdot D_t
\tag{12}
\]

5. Evolução da relação dívida/receita no tempo

A relação \(\frac{D_t}{RCL_t}\) é
fundamental para demonstrar a evolução da dívida em comparação à receita ao longo do tempo. Para determinar a trajetória da referida relação, suponha que a mesma siga uma forma exponencial definida como \(\beta_0 \cdot e^{mt}\), onde \(\beta_0\) é uma constante e \(m\) é a taxa de crescimento da relação dívida/receita.

\[
\frac{D_t}{RCL_t} = \beta_0 \cdot e^{mt}
\tag{13}
\]

De maneira que:

\[
RCL_t = \frac{D_t}{\beta_0 \cdot e^{mt}}
\tag{14}
\]

Substituindo a relação na expressão do gasto primário da equação (8):

\[
G_t = \frac{D_t}{\beta_0 \cdot e^{mt}} - (i + \phi) \cdot
\frac{D_t}{\beta_0 \cdot e^{mt}}
\tag{15}
\]

Fatorando:

\[
G_t = \frac{D_t}{\beta_0 \cdot e^{mt}} \left(1 - (i + \phi)\right)
\tag{16}
\]

Substituindo \(D_t = \beta_0 \cdot RCL_t \cdot e^{mt}\) na expressão acima:

\[
G_t = \frac{\beta_0 \cdot RCL_t \cdot e^{mt}}{\beta_0 \cdot e^{mt}} \left(1 - (i + \phi)\right)
\tag{17}
\]

A expressão acima é uma forma específica da equação (8) onde se assume uma relação particular entre o gasto primário e a \(RCL_t\).

\[
G_t = RCL_t \left(1 - (i + \phi)\right)
\tag{18}
\]

Linearizando-se (18) e derivando-se em relação ao tempo, encontra-se a taxa instantânea de crescimento do gasto primário. Aplicando o logaritmo natural em ambos os lados:

\[
\ln(G_t) = \ln\left(RCL_t \cdot \left(1 - (i + \phi)\right)\right)
\tag{19}
\]

Substituindo \(RCL_t = RCL_0 \cdot e^{gt}\):

\[
\ln(G_t) = \ln\left(RCL_0 \cdot e^{gt}\right) + \ln\left(1 - (i +\phi)\right)
\tag{20}
\]

Simplificando:

\[
\ln(G_t) = \ln(RCL_0) + gt + \ln\left(1 - (i + \phi)\right)
\tag{21}
\]

Derivando em relação ao tempo \(t\):

\[
\frac{d}{dt}\ln(G_t) = g
\tag{22}
\]

A taxa de crescimento do gasto primário \(G_t\) é igual à taxa de crescimento da receita líquida \(g\). Por hipótese, pode-se supor que a receita líquida cresça à mesma taxa anual do PIB local, assumindo uma elasticidade unitária.

6. Equação dinâmica do resultado primário

Sendo a receita igual a \(RCL_t = RCL_0 \cdot e^{g t}\) e a dívida pública \(D_t = D_0 \cdot e^{(i + \phi) t}\), a expressão do resultado primário é dada por:

\[
X_t = RCL_0 \cdot e^{gt} - (i + \phi) \cdot D_0 \cdot e^{(i + \phi) t}
\tag{23}
\]

7. Condição de estabilização da dívida no tempo

Para estabilizar a relação dívida/receita, a taxa de crescimento da dívida líquida deve ser menor ou igual à taxa de crescimento da receita \(g\):

\[
i + \phi \leq g
\tag{24}
\]

8. Considerações Finais

O estudo reafirma que, para estabilizar a relação entre a DCL/RCL, a taxa de juros real e a regra de indexação não devem acelerar a dívida além do crescimento real da receita líquida. A equação recursiva utilizada esclarece a evolução da dívida ao longo do tempo, demonstrando que a estabilização é viável quando o governo gera um resultado primário suficiente para cobrir os encargos com a dívida. No entanto, essa evidência é frequentemente negligenciada, pois há uma insistência em concentrar o ajuste apenas nas despesas obrigatórias, sem uma abordagem mais ampla.

A sustentabilidade fiscal exige que a taxa de crescimento da dívida (resultante da soma da taxa de juros nominal \(i\) e da atualização monetária \(\phi\)) seja menor ou igual à taxa de crescimento da receita líquida (\(g\)). Essa condição, expressa como \(i + \phi \leq g\), deve ser continuamente monitorada pelos formuladores de políticas fiscais.

Para manter a dívida pública estável, o governo precisa gerar um superávit primário \(X_t\) suficiente para cobrir os custos da dívida, ou seja, equivalente a \((i + \phi) \cdot D_t\). Se o superávit for suficiente para cobrir esses encargos, a dívida não aumentará em termos absolutos.

A análise destaca que políticas fiscais rigorosas são essenciais para a sustentabilidade financeira dos governos subnacionais. Promover o controle do déficit primário e garantir que a dívida cresça a uma taxa igual ou inferior à da receita é fundamental para evitar um endividamento descontrolado.

9. Exemplo prático

Para ilustrar a aplicação das fórmulas apresentadas, realizamos uma simulação utilizando os seguintes parâmetros. Considere que um governo subnacional apresenta a seguinte situação fiscal inicial:

  • Dívida Consolidada Líquida (DCL) no início do ano: R$ 104 milhões;
  • Receita Corrente Líquida (RCL) no início do ano: R$ 56,2 milhões;
  • Taxa de juros nominal: 4% ao ano;
  • Taxa de atualização monetária: 2% ao ano;
  • Taxa de crescimento da RCL: 2% ao ano;
  • Relação inicial Dívida/RCL: 1,85;
  • Período de simulação: 10 anos.

Na primeira simulação, não se assume que a relação Dívida/RCL permaneça constante em 1,85. Em vez disso, essa relação é utilizada como ponto de partida, e sua variação ao longo do tempo é determinada pelo crescimento da dívida e da RCL. A dívida consolidada cresce a uma taxa fixa de 6% ao ano (soma da taxa de juros nominal e da taxa de atualização monetária), enquanto a RCL cresce a uma taxa de 2% ao ano. Com esses parâmetros, os resultados mostram que a relação Dívida/RCL se altera gradualmente ao longo do tempo, conforme a dívida e a receita evoluem de maneira diferente.

 

 
Simulação de Resultados (R$ milhões)
AnoDívidaRCLGasto PrimárioResultado PrimárioServiço da DívidaDCL/RCL
0104.0056.2049.966.246.241.85
1110.4357.3450.716.636.631.93
2117.2658.4951.467.047.042.00
3124.5159.6852.207.477.472.09
4132.2160.8852.957.937.932.17
5140.3962.1153.698.428.422.26
6149.0763.3754.428.948.942.35
7158.2864.6555.159.509.502.45
8168.0765.9555.8710.0810.082.55
9178.4667.2856.5810.7110.712.65
FONTE: Simulação realizada pelo autor.

 

Na segunda simulação, a relação Dívida/RCL varia conforme diferentes taxas de crescimento da RCL (2%, 3%, 4%, 5%, e 6% ao ano). O crescimento da dívida é fixo em \(i + \phi = 6\%\), o que significa que, em alguns cenários, a relação Dívida/RCL aumenta, uma vez que a dívida cresce a uma taxa mais rápida do que a receita primária.

 

Simulação de Crescimento da Relação DCL/RCL com Diferentes Taxas de
Crescimento da RCL
AnoCresc. 2%Cresc. 3%Cresc. 4%Cresc. 5%Cresc. 6%
01.851.851.851.851.85
11.931.911.891.871.85
22.001.961.931.891.85
32.092.021.961.911.85
42.172.092.001.931.85
52.262.152.041.941.85
62.352.212.091.961.85
72.452.282.131.981.85
82.552.352.172.001.85
92.652.422.212.021.85
FONTE: Simulação realizada pelo autor.

 

 

Referências

CALAZANS, Roberto Balau. Dívida Líquida, Receita Líquida e a Dinâmica de Ajuste nos Governos Subnacionais. In: CALAZANS, Roberto Balau; SANTOS, Darcy Francisco Carvalho. *Dívida Pública e Previdência Social: Introdução teórica e as Estatísticas Fiscais do Brasil e do RS*. 2021. E-book Kindle. Disponível em: <https://www.amazon.com.br/D%C3%ADvida-P%C3%BAblica-Previd%C3%AAncia-Social-Estat%C3%ADsticas-ebook/dp/B08Z35V3RR/ref=sr_1_6?__mk_pt_BR=%C3%85M%C3%85%C5%BD%C3%95%C3%91&dchild=1&keywords=calazans&qid=1616001658&sr=8-6>. Acesso em: 03 jul. 2024.


 

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