O resultado primário como um fim em si mesmo

 

 

 

 

 

A implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) no Brasil representou um marco significativo na definição da política fiscal dos governos. Com a LRF, o resultado primário se tornou o principal indicador da política fiscal, medindo a diferença entre receitas e despesas antes do pagamento dos juros da dívida. No entanto, essa medida é frequentemente criticada por promover uma política de austeridade que pode impactar negativamente os investimentos públicos e os gastos obrigatórios, como em saúde, educação e infraestrutura.

Lara Resende (2020) argumenta que a combinação de uma política de juros extremamente altos, mantida pelo Banco Central desde o Plano Real em 1994 até recentemente, e a obsessão por equilibrar as contas públicas por meio do aumento da carga tributária e cortes nos investimentos foram as principais causas do baixo crescimento econômico nas últimas décadas. Ele defende que “supor que o país possa ter um crescimento superior à taxa de juros da dívida é uma hipótese mais do que razoável, se conseguirmos nos livrar da camisa de força ideológica do equilíbrio fiscal e se o Banco Central não se curvar aos apelos dos economistas de mercado para elevar a taxa de juros”.

Para atingir as metas fiscais estabelecidas pela referida lei, a União frequentemente recorreu ao aumento da carga tributária para cobrir o crescimento dos gastos, especialmente com seguridade e previdência social. Nos governos regionais, a prática de elevar impostos também foi comum como estratégia para equilibrar os orçamentos e lidar com o aumento das despesas primárias, especialmente as previdenciárias.

Os governos subnacionais são, muitas vezes, vistos como exemplos de bons gestores por adotarem medidas como o aumento de impostos, congelamento de salários, estabelecimento de contingenciamentos anuais na execução orçamentária e redução de investimentos ao mínimo necessário. No entanto, uma análise focada apenas nos resultados fiscais ignora aspectos cruciais como a sustentabilidade da dívida, a qualidade dos gastos públicos, a manutenção da infraestrutura e os impactos nas áreas de educação, saúde e segurança pública.

Teoricamente, a política fiscal deveria buscar um equilíbrio entre o aumento de receitas e a redução de despesas primárias para gerar uma poupança não financeira que permitisse o abatimento dos juros nominais da dívida. No critério “acima da linha”, o resultado primário é calculado pela diferença entre receitas e despesas primárias. Receitas primárias são obtidas descontando-se da receita total as operações de crédito, alienação de bens, receitas financeiras e anulações de restos a pagar. Já as despesas primárias são calculadas descontando-se das despesas totais as concessões de empréstimos, serviço da dívida e privatizações.

Além disso, o Banco Central calcula os resultados fiscais a partir do endividamento líquido do setor público consolidado e regional. Nesse contexto, o resultado primário calculado “abaixo da linha” é a diferença entre o resultado nominal e os juros nominais. Essa abordagem proporciona uma visão mais ampla da saúde fiscal do governo, considerando a evolução da dívida pública.

Os critérios de apuração do resultado primário, tanto “acima da linha” quanto “abaixo da linha”, são de fato complementares. O critério “abaixo da linha” é essencial para medir as necessidades de financiamento do setor público e a carga de juros nominais que a sociedade assume para sustentar a elevação da dívida pública. Sayad (2016) observa que a origem teórica de um economista pode influenciar sua interpretação sobre o déficit público e a disciplina fiscal. Uma vertente tradicional considera o déficit público e a falta de disciplina fiscal como causas da inflação e do baixo crescimento econômico. Em contrapartida, outras vertentes focam nos juros nominais e na dívida pública, sugerindo a redução da taxa básica de juros para estimular a expansão econômica.

A vertente tradicional enfatiza a necessidade de poupança não financeira para estabilizar a relação dívida/PIB. Embora essa abordagem seja logicamente correta, muitas vezes negligencia a trajetória dos juros nominais e reais incorporados à dívida bruta no Brasil. Esse descuido pode beneficiar a riqueza financeira privada e agravar o desequilíbrio das contas públicas.

Entre 2002 e 2014, o Governo Central conseguiu gerar superávits primários consecutivos, apesar dos déficits nominais crescentes e da incorporação dos juros nominais à dívida bruta, em função da política monetária estabelecida pelo Banco Central. A recessão econômica, iniciada em 2014, com ápice em 2015-16 e retração de 7% do PIB, a lenta recuperação de 2017-19, elevou os déficits primários do Governo Central e a vulnerabilidade financeira dos entes subnacionais.

Os investimentos do Governo Federal (GND 4) também seguiram uma trajetória descendente, representando uma média de apenas 0,8% do PIB no período de 2008 a 2023. O gráfico abaixo ilustra essa trajetória ao longo desse período como proporção do PIB:

O investimento médio dos governos estaduais atinge apenas 9% da Receita Corrente líquida ao longo de 23 anos.

A política fiscal voltada para a obtenção de superávits primários tem sido implementada através do aumento da carga tributária e da postergação de investimentos, especialmente em infraestrutura e políticas sociais. Tal prática tem retardado a retomada do crescimento econômico brasileiro. Como alternativa, sugere-se que a política macroeconômica busque elevar a poupança interna para financiar o investimento público, evitando que a meta de resultado primário leve à queda dos investimentos.

Existem conceitos alternativos propostos na literatura, como a poupança corrente e as necessidades de financiamento operacional. A poupança corrente é definida como a diferença entre receitas e despesas correntes, incluindo pagamentos de juros. Desde 2019, o Tesouro Nacional divulga dados sobre a poupança corrente dos estados, o que permite avaliar a autonomia dos entes públicos em realizar investimentos com recursos próprios. Quando a poupança corrente é negativa, indica-se uma dependência de receitas de capital, como operações de crédito.

Embora o resultado primário mensure a poupança não financeira dos governos, a exclusão dos investimentos visa ampliar o espaço fiscal e flexibilizar as metas fiscais. A verdadeira consistência dessa exclusão só seria alcançada com a redução ou extinção de vinculações constitucionais através de um novo marco legal do orçamento público.

Devido à rigidez orçamentária, a expansão do investimento requer operações de crédito, especialmente para governos regionais com baixa poupança corrente, o que eleva a dívida pública subnacional. Estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, cronicamente endividados, comprometeram-se a gerar resultados primários positivos e implementar tetos de gastos, intensificando a austeridade fiscal e potencialmente comprometendo a eficácia das políticas públicas. A enorme acumulação de dívida demandará mais sacrifícios durante anos necessários para ajustar suas contas públicas.

Do ponto de vista teórico, a mensuração do resultado primário é consistente com a necessidade de sustentabilidade da dívida pública. No entanto, a concentração das reformas sobre os gastos obrigatórios (teto de gasto, previdência e administrativa) atende a determinados interesses imediatos. Tais reformas são frequentemente justificadas como necessárias, desde que não alterem os juros nominais incorporados à dívida pública. O mercado financeiro, representado pelos rentistas, não contribui para mudanças na política monetária de juros elevados, prática mantida pelo Banco Central ao longo de décadas.

Referências Bibliográficas

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BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos; RIBEIRO, Thiago. (2007). Os efeitos da poupança pública sobre o crescimento econômico: análise para um painel de países. Publicado apenas em www.bresserpereira.org.br. Jul./2007.

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SAYAD, João. (2016). Dinheiro, Dinheiro: Inflação, desemprego, crises financeiras e bancos. São Paulo, Editora Schwarcz.

SILVA, Alexandre Manoel Ângelo; PIRES, Manoel Carlos de Castro. (2008). Dívida Pública, poupança em conta corrente do governo e superávit primário: uma análise de sustentabilidade. Revista de Economia Política, vol.28. n.º 4(12), p. 612-630.

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