Mas afinal, o que é sustentabilidade fiscal?

 

 

 

 

Após anos de desacertos na política econômica, especialmente durante o governo Dilma, o Brasil enfrentou a maior recessão de sua história (7% de queda do PIB em 2015-2016), seguida de anos de baixo crescimento. Em 2020, a pandemia de Covid-19 agravou ainda mais a situação econômica. Como resultado, a dívida bruta do país aumentou de 56,3% do PIB em 2014 para 75,8% em 2019 e 88,8% em agosto de 2020. Entre 2014 e 2020, o setor público brasileiro começou a incorrer em pesados déficits primários, e diversos estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, aumentaram sua fragilidade financeira devido à queda acentuada de receitas e ao aumento de despesas.

A implementação do teto de gastos públicos em 2016, que congelou os gastos em termos reais, a Reforma da Previdência em 2019 e a Proposta de Reforma Administrativa em 2020, junto com a significativa redução da taxa Selic pelo Banco Central, representam uma tentativa de buscar a responsabilidade fiscal, apesar de ações populistas no Congresso Nacional.

A pandemia desacelerou o crescimento econômico que estava começando a se recuperar no final de 2019. Em 2020, a elevação do déficit primário e da dívida bruta expôs ainda mais as dificuldades fiscais do governo central. Houve um aumento nas necessidades de financiamento do governo, evidenciado pelo crescimento das operações compromissadas e pelo encurtamento dos prazos dos títulos públicos no mercado.

Portanto, a contínua elevação da dívida bruta do setor público traz a necessidade premente de manutenção da âncora fiscal e pressiona a política macroeconômica a conter a expansão dos gastos públicos nos próximos anos, buscando resultados primários positivos para estabilizar a relação dívida/PIB.

A interação entre a política fiscal e a trajetória da dívida pública é o que se chama de sustentabilidade fiscal. O debate sobre os fatores determinantes e a forma de mensuração tem gerado uma série de trabalhos acadêmicos e econométricos. Este texto visa expor a relevância desse conceito de forma didática e defender uma maior transparência nos demonstrativos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) em relação à mensuração da sustentabilidade da dívida dos entes públicos, especialmente os governos subnacionais.

Ao correlacionar a dívida pública com o PIB, verifica-se sua trajetória e expansão em relação ao crescimento do produto. Indicadores como a Dívida Líquida do Setor Público/PIB (DLSP/PIB) ou Dívida Consolidada Líquida/Receita Corrente Líquida (DCL/RCL), prazos de maturação, tipos de indexadores, fatores de expansão (ou retração) e limites de dívida ajudam a identificar a consistência dos regimes fiscais dos governos.

O Tesouro Nacional desenvolveu forte expertise na gestão da dívida pública federal, tanto interna quanto externa, especialmente no planejamento e gerenciamento da dívida mobiliária. No caso dos governos subnacionais, o Tesouro controla os limites de contratação de crédito, avalia a capacidade de pagamento para honrar novas obrigações, concede garantias às operações contratadas e monitora a consistência dos programas de ajuste fiscal implementados. No entanto, a divulgação das estatísticas sobre o endividamento público não enfatiza a sustentabilidade da dívida dos governos subnacionais e sua consistência com a política fiscal de médio e longo prazo.

A Lei de Responsabilidade Fiscal poderia ser aperfeiçoada para tornar mais transparente a análise de sustentabilidade da dívida, atualmente restrita às Secretarias de Fazenda, bancos oficiais ou organismos multilaterais (BNDES, Banco Mundial, BID). A partir da LRF, em 2000, os entes federados passaram a respeitar a supervisão exercida pela União, cumprindo metas e limites legais definidos pela lei, com o Tesouro Nacional responsável por verificar o cumprimento das metas nos acordos de refinanciamento.

A partir de 2015, observou-se a fragilidade financeira de alguns estados, como Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, que ampliaram seus limites de endividamento devido ao afrouxamento dos controles pela União. Para os casos mais graves, a Lei Complementar nº 159, de 19/05/2017, instituiu o Regime de Recuperação Fiscal (RRF) dos estados e Distrito Federal, orientado pelo princípio da sustentabilidade econômico-financeira. Entretanto, este princípio não está consignado na Constituição Federal, e na última década, os entes federados foram incentivados a contrair novas operações de crédito pela própria política econômica da União. Alguns governos estaduais, em situação delicada, expandiram seu endividamento em um contexto de baixa geração de resultados primários, resultando em dívidas líquidas insustentáveis.

Conceitualmente, a sustentabilidade da dívida exige que seu saldo presente não supere o montante dos fluxos descontados dos superávits primários futuros. Na prática, é necessário projetar cenários de resultados primários futuros, considerando as incertezas das variáveis macroeconômicas e a disposição dos gestores públicos em realizar os ajustes necessários, além de escolher a taxa de desconto apropriada (Costa, 2009, p.82). No longo prazo, déficits primários contínuos podem levar à acumulação de dívidas insustentáveis sem um esquema viável de amortização.

Pela álgebra da restrição orçamentária do governo, sabe-se que o crescimento da dívida pública, em termos reais, é função da taxa real de juros, do crescimento real do PIB e do resultado primário. No caso brasileiro, a taxa real de juros supera a taxa de crescimento do PIB, dificultando a plena eficácia da política monetária.

Para os entes subnacionais, que não podem se financiar com títulos ou emissão de moeda, a taxa de expansão da dívida não deve superar o crescimento real da receita líquida, mantendo os gastos primários controlados. A geração de superávits primários garantiria o equilíbrio orçamentário duradouro, supondo-se a ausência de receitas extraordinárias.

Assim, um dos objetivos da política fiscal, seja federal, seja subnacional, é garantir a solvência para cumprir as obrigações com o serviço da dívida e manter sua estabilidade ao longo do tempo, evitando a acumulação excessiva de déficits primários.

A solvência implica a liquidez financeira necessária para que o governo possa cumprir suas obrigações e encargos financeiros da dívida. Em outras palavras, a solvência implica que o valor presente dos resultados primários futuros seja maior ou igual ao serviço da dívida (Goldfajn, 2002).

Por outro lado, a sustentabilidade da dívida exige que seu saldo atual seja igual ao valor presente dos resultados primários futuros, escolhida uma taxa de desconto. A sustentabilidade da dívida pode ser formalizada por:

\[ \ \sum_{i=t}^\infty \frac{X_{t+i}}{(\prod_{j=1}^t (1+r)^i)} \geq D_t \]

onde: \(D_t\) = dívida atual; \(X_{t+i}\) = resultados primários futuros.

É crucial manter a credibilidade dos credores em relação à política fiscal adotada, pois eles financiam os governos. Em uma condição extrema, o descontrole fiscal resultante da imprudência ou insolvência financeira pode levar a um default, uma situação de desconfiança generalizada no mercado de títulos, onde o ente público não consegue cumprir suas obrigações financeiras.

A trajetória de convergência para o equilíbrio intertemporal, ou seja, uma relação DLSP/PIB estável para o país, ou uma DCL/RCL dentro de limites aceitáveis para os governos locais, será mais eficaz se ocorrer em um horizonte temporal de ajuste razoável, garantindo a solvência financeira e uma gestão responsável dos passivos, mantendo os indicadores compatíveis com a sustentabilidade da dívida e a execução da política fiscal de médio e longo prazo.

É importante lembrar que a expansão do endividamento de um ente federado não pode ser explicada apenas por déficits passados ou pela imprudência dos gestores públicos. Uma política monetária com juros reais elevados, como a praticada no Brasil, interferiu na expansão dos juros nominais, no déficit nominal e no crescimento da dívida mobiliária federal e da dívida contratual de alguns estados. Vários economistas questionam a eficácia da política monetária brasileira, que manteve uma taxa Selic muito elevada durante anos, inviabilizando qualquer estratégia de expansão do investimento no país.

No caso dos acordos de refinanciamento das dívidas estaduais, sob a Lei nº 9.496/97, a política monetária foi responsável pela expansão das dívidas mobiliárias, em termos reais, em diversos estados entre 1994 e 1998. Em alguns casos, os programas de ajuste fiscal supervisionados pela Secretaria do Tesouro Nacional junto aos entes endividados (Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul) não alcançaram resultados satisfatórios na redução de suas dívidas líquidas.

O caso do Rio Grande do Sul é o mais emblemático, pois este demorou a atingir o percentual de 200% da relação DCL/RCL proposto pelo Senado Federal. Mesmo com o controle exercido pela União, o ajuste das contas estaduais tornou-se “interminável’’. As negociações em torno do Regime de Recuperação Fiscal redundaram numa acumulação de dívida “perpétua”.

Do ponto de vista dos indicadores usados pelo mercado e agências multilaterais de financiamento, Ley (2009) observa que, para aferir o grau de endividamento, o prazo médio de maturação (Average Time to Maturity – ATM) é um indicador de risco usual, baseado no prazo de pagamento das amortizações. O ATM é um indicativo da concentração de vencimentos no curto prazo e, consequentemente, do risco de refinanciamento. O ATM é calculado como:

\[ ATM= \sum_{t=1}^t \left( \frac{t \cdot A_t}{D_t} \right) \]

onde: \(A_t\) = valor das amortizações no período t; \(D_t\) = valor das dívidas; \(t\) = prazo até o vencimento.

A duration é outra medida usual de risco, indicando o prazo médio de maturação, calculado pela ponderação entre o valor presente do serviço da dívida e o período de duração. Para calcular a duration, é necessário determinar o valor presente das dívidas, construindo as respectivas curvas de cupons para cada indexador. As curvas de cupons são índices de descontos que refletem as expectativas de mercado e trazem ao valor presente os fluxos de pagamentos da dívida. A duration é expressa como:

\[ VP_t= \sum_{t=1}^t \left( \frac{t \cdot S_t \cdot (1+i)^{-t}}{VP_t} \right) \]

onde: \(S_t\) = valor dos serviços da dívida no período t; \(VP_t\) = valor presente das dívidas; \(i\) = taxa de desconto da curva cupom; \(t\) = tempo para o vencimento.

Referências Bibliográficas

BRASIL, Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000. Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp101.htm.

______, Proposta de Emenda à Constituição n.º 186. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/139702.

COSTA, Carlos Eugênio Ellery Lustosa. (2009). Sustentabilidade da dívida pública. Dívida pública: a experiência brasileira. Secretaria do Tesouro Nacional, p.81-99.

LEY, Eduardo. (2009). Fiscal (and External) Sustainability. World Bank. (Version: february, 28). Disponível em: https://mpra.ub.uni-muenchen.de/13693/1/MPRA_paper_13693.pdf.

LUPORINI, Viviane. (2006), Conceitos de Sustentabilidade Fiscal. Texto para Discussão. TD189. Maio/2006.

GOLDFAJN, Ilan. (2002). Há razões para duvidar de que a dívida pública no Brasil é sustentável. Notas Técnicas do Banco Central do Brasil. Número 25, julho/2002.

GOLDFAJN, Ilan; GUARDIA, Eduardo Refinetti. (2003). Regras fiscais e Sustentabilidade da dívida no Brasil. Notas Técnicas do Banco Central do Brasil. Número 39, julho/2003.

PASTORE, Affonso Celso Pastore. (2016). Desajuste fiscal e a inflação: uma perspectiva histórica. In: Bacha, Edmar. A crise fiscal e monetária brasileira. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.

________. (2020).Ressurgimento da intolerância à dívida? O Estado de São Paulo. 13 de setembro.

ROCHA, Fabiana. (2005). Déficit Público e a sustentabilidade da política fiscal: teoria e aplicações. In: Economia do Setor Público no Brasil. Rio de Janeiro, Editora Campus. p.493-507.

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