Como gerar uma dívida impagável: o caso gaúcho

 

 

 

 

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) move uma ação judicial questionando os critérios financeiros do contrato regido pela Lei n.º 9.496/97, o que poderia reduzir parte relevante desse passivo. Embora seja válido criticar o anatocismo da dívida e outras cláusulas contratuais, não parece correto afirmar que a dívida já foi quitada, como sugere a deputada Luciana Genro. A expansão do endividamento estadual decorreu dos juros elevados (6% ao ano), da indexação ao IGP-DI, da conta resíduo e da influência da política monetária do Governo Federal no período de 1994 a 1998, quando a dívida do Rio Grande do Sul estava federalizada. Em 2015, o governo federal reduziu os juros do Acordo da Dívida para 4% ao ano e a indexação passou a ser de 4% + IPCA ou Selic, o que for menor.

Esses fatos estão bem documentados na literatura sobre finanças estaduais e nos Relatórios da Dívida da Secretaria da Fazenda do Rio Grande do Sul (Sefaz/RS). O assunto também foi avaliado pelo Tribunal de Contas do Estado. Se houvesse pagamento excessivo, o TCE teria falhado enquanto órgão fiscalizador das contas estaduais. Diante de um refinanciamento que começou em R$ 7,9 bilhões (em 16/11/1998), passou para R$ 74 bilhões em 2022, e cujo principal já foi pago, cabe questionar como essa suposta situação poderia ter ocorrido.

É preocupante que o nosso Parlamento tenha aprovado um regime fiscal que aumentará o passivo estadual, com todas as imposições do Governo Federal. Faltou tempo suficiente para a apreciação do tema após cinco anos de negociações? Além disso, teremos um comitê de servidores (não eleitos) com poderes acima do governador para ditar e corrigir a política fiscal do Estado.

Enquanto chovem críticas consistentes ao novo regime, o Secretário da Fazenda Estadual apresenta uma visão paralela, sugerindo que estamos diante da retomada do equilíbrio orçamentário e da recuperação da capacidade de investimento. Para isso se concretizar, seria necessário projetar uma geração de caixa (superávits primários) consistente. Historicamente, esses resultados têm sido baixos, como proporção do PIB. O PIB estadual precisaria crescer, em média, acima de 3% nos próximos 10 anos (a média atual é inferior a 2%). Além disso, a taxa Selic teria que sinalizar uma queda prolongada dos juros futuros, diminuindo a pressão sobre a indexação da dívida estadual. Em qual cenário as projeções do RRF foram construídas, considerando apenas a contração real dos gastos primários?

Ao debater com defensores desse regime, são comuns dois argumentos básicos: (i) não havia outra solução legal além daquela imposta pela União, sob o risco de perder as liminares do STF; e (ii) o Plano do RRF depende do crescimento do PIB estadual e da arrecadação de ICMS. Contudo, com o teto do ICMS para combustíveis, energia e telecomunicações, estima-se uma perda de R$ 5 bilhões em 2023.

Surpreende que os fundamentos de uma reestruturação de passivos raramente sejam mencionados. Em outras palavras, os juros de 4% do contrato são elevados, e o mecanismo de indexação (CAM) é desfavorável ao devedor, pois se submete à inflação (4% + IPCA) e à política monetária (Selic), o que for menor. Além disso, o custo social do ajuste é frequentemente negligenciado. Em geral, há uma suposição voluntariosa de que os superávits primários serão alcançados a qualquer custo, seja com teto de gastos, redução de investimentos, controle de custeio ou arrocho salarial.

Agora, entrando no cerne da reestruturação do passivo estadual proposta pelo governo Leite: o Estado não tinha condições financeiras para honrar o pagamento das parcelas da dívida e beneficiava-se de sua suspensão por decisões liminares entre julho de 2017 e fevereiro de 2022. Nos termos do Art. 23 da LC 178, de 13/01/2021, a União celebrará um novo contrato com prazo de 360 meses para refinanciar os valores inadimplidos em decorrência de decisões judiciais. O saldo acumulado chegou a R$ 17 bilhões, dependendo da data de atualização.

Quanto ao principal do contrato da Lei 9.496/97, no valor de R$ 57 bilhões, haverá uma redução extraordinária nas prestações, com pagamentos escalonados de 11,11% em 2023, 22,22% em 2024, até atingir 88,89% em dezembro de 2030, passando a ser integrais a partir de janeiro de 2031. Os valores não pagos serão agregados aos saldos existentes do Art. 23 da LC 178. Além disso, o governo incluiu o fluxo de pagamento de outros passivos contratuais com o Banco Mundial, Banco Interamericano e BNDES no regime até 2030. Isso recria a antiga “Conta Resíduo”, um mecanismo de acumulação de parcelas não pagas.

Somando-se todas as operações previstas, o valor de face da operação é de R$ 74 bilhões em fevereiro de 2022. Em teoria, a reestruturação de dívidas visa reduzir o montante total, diminuir ou suspender os juros e alongar o prazo de pagamento. No caso do RS, o alongamento alcançará 227% do valor atual da dívida, segundo cálculos iniciais (168 bi / 74 bi). Na prática, estaremos presos ao contrato assinado pelo então governador Britto por 54 anos (1998-2052). A relação entre valor projetado e valor presente é um indicador crucial para reestruturações de dívida.

Utilizando outra metodologia, baseada no Sistema Price, estimei a planilha de amortização do RRF em valores reais e com base nos parâmetros estabelecidos pelo art. 23 da LC 178 e pelo art. 9-A da LC 159. A taxa de juros nominal é de 4% ao ano em todo o período. O valor a ser dispendido com o RRF alcançará o montante significativo de R$ 147,3 bilhões a preços de 2022, com uma relação valor projetado/valor de face de aproximadamente 199%. A vida média da nova operação seria de 19 anos, e a duration, de 16,4 anos. Note-se que a volatilidade da Selic, decorrente da política monetária do Banco Central, não foi incluída nas hipóteses de simulação.

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