O retrocesso na gestão da Secretaria da Fazenda

A sociedade gaúcha assiste, atônita, mais uma vez aflorarem conflitos de ordem corporativa na Secretaria da Fazenda do Estado. Quando se esperava pelo encaminhamento de ações que visassem à consolidação do cargo de Agente Fiscal do Tesouro do Estado, o Secretário da Fazenda, dando vazão a reivindicações meramente corporativistas dos ex-fiscais de tributos estaduais, orquestrou o envio de projeto de lei à Assembléia Legislativa que propõe a segmentação da carreira de nível superior, criando uma carreira exclusiva da receita.

O principal argumento para a sustentação da proposta é que a especialização trará ganhos de produtividade, proporcionando aumentos de arrecadação capazes de atender às demandas do governo. Como exemplo de sucesso desse tipo de solução os ex-fiscais citam o Estado do Rio Grande do Norte, onde foi criada uma secretaria de tributação, encarregada de tratar exclusivamente dos assuntos relativos às receitas estaduais. O argumento chega a ser constrangedor. O Rio Grande do Sul, que responde por 6,86% do total do ICMS arrecadado no país, e sempre foi considerado estado de vanguarda no cenário nacional, vai buscar no Rio Grande do Norte, que detém apenas 0,96% do ICMS nacional, um modelo para o incremento da arrecadação e solução de sua crise fiscal (lato sensu).

A justificativa é que naquele estado, após a criação da secretaria especializada, a arrecadação nominal do ICMS aumentou 166,1% no período de 1995 a 2000. Mas se esse é o argumento, poder-se-ia buscar o caso do Acre, onde a arrecadação aumentou 189,8% no mesmo período. Ou de Roraima, que obteve um incremento de 183,7%. Não se tem notícia, entretanto, que nesses entes federativos tenha havido a criação da tão decantada secretaria de tributação. Para que fosse razoável o argumento, deveriam os defensores da idéia da especialização comparar o Rio Grande do Sul com o Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro ou até mesmo São Paulo. Na verdade, busca-se o Rio Grande do Norte apenas para dar vazão às aspirações estritamente corporativistas, de caráter inconfessável. Do ponto de vista científico e factual, não há qualquer aderência do modelo à realidade.

O crescimento da arrecadação naquele estado, assim como no Acre e no Roraima, deu-se em virtude do baixo patamar de eficácia tributária que apresentavam. De acordo com os economistas Schwengber e Pontual Ribeiro, que escreveram um trabalho intitulado Uma Estimativa do Potencial de Arrecadação do ICMS, numa escala de eficácia tributária de arrecadação do ICMS, que vai de zero a um, o Rio Grande do Sul tem índice de 0,96, enquanto que o Rio Grande do Norte tem um índice de 0,62, o Acre de 0,39 e o Piauí de 0,55. A conclusão é fácil. Em virtude da baixa eficácia tributária, qualquer ação que dê um mínimo de organização às estruturas de arrecadação proporciona significativos incrementos na receita do estado. Feitas essas considerações, passamos a destacar alguns aspectos de grande relevância que não têm sido devidamente considerados no debate. Fundamentalmente, é importante ressaltar o que de fato representa uma carreira exclusiva do receita no RS.

Em primeiro lugar, alertamos, mais uma vez, a diminuta possibilidade de aumentos expressivos da arrecadação em virtude da criação de uma carreira exclusiva da receita. Os instrumentos a disposição do Poder Executivo são suficientes para obtenção dos incrementos desejados. Em virtude do elevado grau de eficácia tributária do RS (0,96), é preciso implementar medidas administrativas que façam um “ajuste fino” na máquina fazendária. Ou seja, é preciso capacidade de gerenciamento, e não projetos milagrosos. Segundo, devido às evidentes ilegalidades, inconstitucionalidades e outras graves imperfeições contidas no projeto de lei, aflorarão demandas judiciais que se estenderão por longo tempo, paralisando a máquina fazendária, com repercussões em toda a Administração Pública Estadual. Terceiro, não se pode deixar de dizer, também, que a proposta, se aprovada, tornaria os governos reféns da nova burocracia fazendária e de seus interesses corporativistas, cujos integrantes passariam a demandar privilégios de toda ordem.

Aliás, a tendência mundial tem sido reduzir a autonomia e aumentar o controle sobre as atividades de fiscalização, evitando a constituição de “brigadas fiscalizadoras”. Neste sentido, registre-se a recente medida do Secretário da Receita Federal, ao implantar o controle, por parte dos fiscalizados, dos objetivos e, até mesmo, do tempo das ações fiscais. Quarto, ao propor a especialização de cargos, o projeto vai contra as modernas técnicas de administração de pessoal, em que se busca a formação de profissionais versáteis, que podem ser aproveitados em diferentes funções dentro de uma determinada organização. Quando se defende a formação desse profissional, não se nega que possa haver especialização, de acordo com as necessidades do órgão fazendário.

Todavia, a especialização (seja nas áreas da receita, da despesa ou do controle interno), deve ser um processo natural e flexível no decorrer do tempo. Não se pode obrigar a Administração Pública a manter um servidor uma vida inteira como especialista em uma única função ou campo de conhecimento. Quinto, reforçamos a tese de que o projeto causará a desarticulação da área financeira do Estado, uma vez que diminui a capacidade de coordenação da administração fazendária. Ou seja, com o projeto, teremos pessoas ocupando cargos especializados, mas perderemos capacidade de articulação da política fiscal (lato sensu), que é a tarefa mais importante a ser realizada. Afinal, a Fazenda é ou não é o locus de elaboração da política fiscal estadual? Sexto, estamos diante de um enorme retrocesso na modernização da máquina fazendária. Nos últimos 12 anos, todos os governos implementaram ações que convergiram para o cargo único, hoje existente. Essas ações foram embasadas em trabalhos de consultorias renomadas (FGV, Relatório Sayad) e não podem ser desprezadas num momento em que o Estado atravessa uma enorme crise fiscal.

Poderíamos arrolar um sem número de outros aspectos que deveriam ser considerados no debate. Entretanto, propomo-nos, nesse momento, a apresentar sugestões que se enquadram no “ajuste fino” acima mencionado, de forma a obter um melhor desempenho de toda a Secretaria da Fazenda. Como ponto de partida, é preciso uma reestruturação administrativa do Órgão Fazendário, criando um Departamento de Arrecadação e vinculando as repartições do interior à Diretoria-Geral da Fazenda. No atual desenho organizacional, a arrecadação está restrita a uma mera divisão, com suas funções esvaziadas, poucos funcionários e sem capacidade de implementar políticas aptas a proporcionar o incremento de receitas. O atual Departamento da Receita, extremamente verticalizado, tem mostrado fraco desempenho no trabalho de fiscalização (seria importante que a sociedade conhecesse, por meio de relatórios quantitativos mensais, qual o resultado da atividade fiscalizadora).

Não se pode deixar de propor, também, que a Secretaria da Fazenda passe a ter presença efetiva em todo o território do Estado. Atualmente, além da capital, alguns poucos municípios, de médio e grande porte, contam com repartições fazendárias funcionando em caráter permanente. Essa ausência traz prejuízos incalculáveis ao Estado e às comunidades. A realização de concurso público é outra medida imperiosa a ser adotada. A carreira única de Agente Fiscal do Tesouro do Estado consolida-se com o ingresso de gente nova, desprovida de preconceitos e compromissos corporativistas, arejando o ambiente carregado que hoje reina na Secretaria da Fazenda. Os novos Agentes Fiscais do Tesouro do Estado, com atribuições plenas, representam um golpe mortal para as esclerosadas estruturas corporativistas hoje existentes.

Aliás, não foi por outro motivo que os ex-fiscais tanto se opuseram à realização do concurso. Infelizmente, acabaram logrando êxito parcial, pois as provas realizadas foram canceladas. Outro ponto fundamental para a obtenção de um melhor desempenho fazendário está relacionado com a “administração para dentro” da Secretaria. Os assuntos estratégicos das finanças estaduais estão a cargos de “funcionários” em cargos em comissão, situação inédita na história da Fazenda Estadual. Além disso, desde junho de 2000 a Secretaria não tem Diretor-Geral, que é a quem compete a gerência dos assuntos internos do Órgão, sendo o principal interlocutor entre os servidores e a alta administração da Pasta. Diante do quadro apresentado, e sem que tenhamos esgotado o assunto, entendemos que propugnar por uma carreira exclusiva da receita como forma de aumentar a arrecadação representa erro crasso na avaliação da realidade, que certamente trará problemas insolúveis para a atual e as futuras administrações estaduais. Por isso, conclamamos a toda a sociedade gaúcha, os partidos políticos, empresários e servidores públicos, que rejeitem o projeto proposto pelo Secretário da Fazenda do Estado.

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