Como observou Keynes, a economia é um tema difícil e técnico, mas parece que alguns não acreditam nisso. Algumas vezes, surgem novas “pajelanças”, que prometem o nirvana e a terapia indolor para uma crise fiscal. No Rio Grande do Sul, sua mais nova versão é a do fundamentalismo fiscal, centrado na bandeira da independência da administração tributária como forma de sanear as finanças estaduais. Em tese, convém lembrar que a essência do fiscalismo consiste em aumentar impostos e repassar a crise fiscal do Estado para cima dos contribuintes.
Por essa razão, na Europa ocorreu uma enorme reação teórica e dos partidos contra as políticas macroeconômicas derivadas a partir dessa vertente de pensamento. Para se ser bem claro, o termo “fiscalismo ortodoxo” designa aquela forma de pensamento da burocracia fiscal que pretende sobrepor seus interesses de grupo aos interesses públicos. Na prática, mesmo que se faça uma varredura na literatura à procura de modelos otimizadores da gestão tributária, é preciso ser dito que, no caso específico do RS, os teóricos do fiscalismo gaúcho foram incapazes de produzir um diagnóstico consistente sobre a crise fiscal que atravessa o Estado. As posições fundamentalistas inibiram e desperdiçaram a energia técnica da Secretaria Fazenda, perdendo tempo precioso na busca de paradigmas teóricos para sustentar posições corporativas.
O objetivo deste artigo é demonstrar algumas ilusões e heresias econômicas produzidas pelo discurso fiscalista no RS, nos últimos anos. A primeira delas (histórica por sinal) consiste em tentar iludir os novos governantes de que a receita do ICMS está muito abaixo do seu nível potencial. Nessa conta, até perdas de arrecadação tributária, como as que ocorrem por conta das imunidades constitucionais e com as isenções do ICMS sobre as exportações, estão contabilizadas. Isso dá a sensação aos Secretários de Fazenda de que basta vontade política para alcançar o paraíso tributário. Não lhes é dito que o ICMS potencial é apenas uma possibilidade teórica sujeita a limites políticos, econômicos e legais. Nesse sentido, sugere-se a leitura do brilhante trabalho: Uma Estimativa do Potencial de Arrecadação do ICMS, de Schwengber e Pontual Ribeiro, no qual os autores demonstram (pasmem!) que o RS está entre os estados da Federação mais próximos à fronteira de eficácia tributária de arrecadação do ICMS. Numa escala de zero a um, o Estado gaúcho tem índice 0,96.
Evidentemente que é possível alcançar maior produtividade na arrecadação tributária, porém, dada a carga tributária hoje existente (no Brasil e no RS), a elevação de alíquotas do ICMS implica apenas ganhos marginais, e os ganhos decorrentes de melhoria de gestão ou alterações da legislação são sempre superestimados pelos fiscalistas gaúchos. Aqui cabe a pergunta: então, para que o isolamento da máquina tributária como meio de aumentar a eficácia tributária? A resposta parece óbvia. A defesa do isolamento para o fisco e de maior autonomia aos técnicos da fiscalização tributária, em que pese à enorme ginástica retórica, é apenas mais uma nítida demonstração de barganha corporativa, visando a concessões salariais e à ampliação de poder. Faz parte do pacote de ilusões que, tradicionalmente, são oferecidas pela área tributária aos Secretários de Fazenda. A segunda ilusão é a do estoque de dívida ativa contabilizada nos balanços do Estado. Ao se deparar com um número vultoso (alguns bilhões de reais), um Secretário de Fazenda noviço tem a sensação de que ali está a solução para o todos os seus problemas.
Afinal, basta cobrar alguns devedores, e os cofres do Tesouro abarrotar-se-ão de dinheiro. Entretanto não lhe é mencionado que, por detrás daqueles valores, na maioria dos casos, não há sequer valores patrimoniais que cubram o que é devido ao Tesouro Estadual. Vale notar a experiência de Minas Gerais em matéria fiscal, que tenta, por todos os meios, evitar a criação da dívida ativa, pois, ao serem estudados os fluxos de pagamento do imposto das empresas autuadas, foi observado que estas simplesmente ajustam seus fluxos de recolhimento do ICMS (ICMS normal mais parcelas correspondentes às autuações) aos níveis anteriores de recolhimento do tributo, de forma a não prejudicarem seus caixas. A terceira ilusão defendida pelo fiscalismo e apresentada aos últimos Secretários de Fazenda do RS é sobre a possibilidade de elevar a participação relativa do ICMS do RS de 6,9% para 8,3% na arrecadação nacional, em curto espaço de tempo.
Na atual situação do RS, para realizar tal façanha, é preciso que o ICMS gaúcho cresça à taxa de 22,8% acima do crescimento real do ICMS dos demais estados brasileiros nos próximos três anos. Trata-se de uma enorme bobagem produzida por especialistas, pois, se o ICMS dos demais estados crescer, por exemplo, 4% ao ano nos próximos três anos, o ICMS gaúcho precisará ter um crescimento real de 38,14% até 2002, para alcançar a participação de 8,3% no total do ICMS do Brasil. Ora, levando-se em consideração o atual nível de eficácia tributária de arrecadação do ICMS do RS, é um absurdo conceber-se tal percentual de crescimento do tributo em tão pouco tempo. Recentemente, apareceu mais uma ilusão: a redenção tributária poderá ser alcançada mediante a criação da administração tributária isolada das demais áreas fazendárias. Esse é um velho sonho de burocratas fiscais. Burocratas fiscais lutam por mais poder e por recursos para exercerem suas tarefas, é de sua natureza. Porém esse esforço, no limite, acaba redundando em aumento salarial e prejuízo aos contribuintes.
Por esse motivo, num recente artigo, um representante do fiscalismo mencionou que a escala salarial influi na eficiência do trabalho da fiscalização: “(…) é inútil esperar uma administração tributária eficiente com base na estrutura e na escala de salários de uma burocracia comum”.
Parece que os fiscalistas gaúchos já estão preparando terreno para novos pleitos salariais. Reforça esta tese aqui apresentada, a proposta de projeto de lei complementar para a reorganização dos cargos do Quadro de Pessoal Efetivo da Secretaria da Fazenda, que circulou na referida Secretaria, produzida pelo sindicato fiscalista. Por essa proposta, os funcionários fazendários incorporam as atuais gratificações de produtividade aos vencimentos básicos, aumentando-os em 15%, bem como se define uma nova gratificação por área, que poderá mais do que duplicar seus vencimentos, transformando os fiscais em sócios da arrecadação estadual. Cabe registrar que, para justificar a quarta ilusão, o Rio Grande Norte vem sendo utilizado como benchmark de autonomia de administração tributária. Trata-se de um engodo. Não se pode comparar estados de dimensões econômicas, administrativas e políticas tão diferentes.
O RN é incipiente em matéria tributária. Sua tecnologia em gestão tributária encontra-se num patamar muito inferior aos avanços conseguidos pelo Rio Grande do Sul. Lá ainda não se utilizam os avanços tecnológicos já incorporados à administração tributária gaúcha, como, por exemplo, a total automação nos procedimentos para recolhimento do IPVA no RS, permitindo, inclusive, o pagamento do tributo sem qualquer guia de recolhimento ou fichas de compensação bancária; ou a automatização da constituição do crédito tributário, quando o contribuinte não recolhe o ICMS declarado (GIA em DAT), dentre tantos outros avanços já conseguidos pela administração fazendária gaúcha. Para quem quiser ter uma idéia dos patamares tecnológicos em que se encontram as administração tributárias do Estado do Rio Grande do Norte e do Rio Grande do Sul e fazer alguma comparação, basta pesquisar pela Internet no site www.set.rn.gov.br, para a Secretaria de Tributação do Rio Grande do Norte, e www.sefaz.rs.gov.br, para a Secretaria da Fazenda do Estado do Rio Grande do Sul . Se, por um lado, a administração tributária do RN vem alcançando bons resultados relativos, por outro, ainda engatinha em matéria tecnológica de gestão tributária.
O crescimento do ICMS do RN realmente impressiona (103,32% de 1995 a 1999), mas não pode servir como paradigma do RS. Tal desempenho foi possível em razão do baixo patamar de eficácia tributária em que se encontrava aquele estado até o ano de 1994. Conforme Schwengber e Pontual Ribeiro, na escala de eficácia de zero a um, o RN encontrava-se com 0,56, enquanto o RS se encontrava com 0,96. Por exemplo, o Estado do Acre, sem propaganda alguma da fiscalização gaúcha, alcançou 117,38% no mesmo período e possui uma estrutura de administração tributária completamente distinta da do RN. A questão central – e aí reside a sutileza da argumentação – é que a arrecadação do ICMS do Acre é sete vezes menor que a do Rio Grande do Norte e, em 1994, sua eficácia tributária era de apenas 0,32, portanto, com grande margem para o crescimento.
O RS arrecada oito vezes mais do que o RN e 59 vezes mais do que Acre, e o seu patamar de eficácia tributária muito superior ao desses dois estados. As tecnologias em informática, legislação tributária e experiências administrativas do RS são muito mais ricas que as daqueles estados. Aqui cabe outra pergunta: Por que comparar estados tão diferentes e insistir num famoso “modelo da Secretaria de Tributação do Rio Grande do Norte”? Assim, frente aos excessos corporativos das burocracias, entende-se que uma abordagem moderna por parte dos governos requer regras claras para
contê-las. Regras no sentido de dar-lhes as fronteiras de sua área de atuação, bem como estabelecer controles para que não ultrapassem sua área de atuação, sem constranger a sociedade. Entende-se, por exemplo, que a indicação dos setores econômicos e das empresas com prioridade para receber fiscalização do ICMS deve ser dada por indícios de sonegação e de evasão fiscal, advindos de estudos técnicoestatísticos, produzidos com a utilização da informática, de denúncias ou por pedido de colaboração de outras esferas de governo para o combate à sonegação.
A administração e o acompanhamento das ações do fisco, para se evitar o livre arbítrio, devem ser feitos por um colegiado fazendário multidiciplinar, o que já é possível dentro da atual legislação que estruturou as carreiras da Secretaria da Fazenda do RS. Nesse sentido, registre-se, novamente, a recente medida do Secretário da Receita Federal, ao implantar o controle, por parte dos fiscalizados, dos objetivos e, até mesmo, do tempo das ações fiscais. É importante registrar que não se tem por objetivo travar uma polêmica estéril com determinado campo teórico, o qual se respeita. O grande problema do fundamentalismo fiscal é a sua forma arrogante e maniqueísta de conceber o complexo processo de formulação e elaboração da política fiscal. No mundo concreto das finanças do RS, estes somente percebem o “mundo da administração da Receita Tributária” e o “mundo das demais atribuições” numa visão estanque do processo fazendário.
Por último, do ponto de vista gerencial, a questão fundamental da Secretaria de Fazenda consiste em ampliar sua capacidade de coordenação das políticas tributária, orçamentário-financeira e de controle interno. Como bem observa o Dr. Lopreato, Professor da Unicamp, frente à crise do federalismo no País, cabe repor a Secretaria da Fazenda como locus fundamental de atuação estadual. “O corte na presença das estatais recoloca o orçamento do Tesouro como núcleo central das decisões e responsável direto pela realização dos gastos”. Os atuais servidores e os novos ingressantes na carreira fazendária devem ser capazes de perceber a totalidade da política fiscal do Estado e não serem treinados para ficar olhando apenas para seu próprio umbigo.
Júlio F Gregory Brunet* Paulo R. de Carvalho* Roberto Calazans*