Reforma estrutural do Governo Leite: Amarga, mas necessária

  1. Antecedentes

Embora eu não seja um adepto do liberalismo, concordo com muitas de suas teses e com muitas das afirmações de seus principais ideólogos. E, para iniciar este texto começo com uma citação de Friedrich A. Hayek, retirada do livro “O Caminho da Servidão.

Se, a longo prazo, somos os criadores de nosso destino, de imediato somos escravos das ideias que criamos. Somente reconhecendo o perigo a tempo poderemos ter esperança de evitá-lo.

Pois foi exatamente isso que ocorreu no Estado do RS. Durante várias décadas foram formados déficits em cima de déficits, gerando uma dívida que se multiplicou por mais de 27 vezes em 28 anos, em termos reais. Nossos governantes foram irresponsáveis e perdulários e os que tentaram ser diferentes foram ridicularizados, recebendo os mais variados adjetivos depreciativos.

Sempre a crença foi de que dinheiro público era infinito, que sempre havia onde buscar um recurso adicional, bastava ter a caneta na mão. Era como se desse em árvore ou caísse do céu.

Mas um dia a tinta da caneta acabou, embora ainda haja pessoas que acreditam que na última hora vai aparecer um tinteiro mágico e tudo ficará resolvido. Por isso, não reconhecemos o perigo a tempo e agora está muito difícil de evitá-lo, estamos à beira de um precipício que, dificilmente, não cairemos nele.

A partir de 1999, por exigência do acordo da dívida assinado com a União no ano anterior, começamos um grande ajuste fiscal, cujos resultados foram mais expressivos entre 2007 e 2010, fruto das condições favoráveis da economia que propiciaram um grande crescimento de receita, e de uma administração responsável da despesa.

Mas isso passou. A partir de 2011, com a queda acentuada do ritmo de crescimento da receita, acelerada que foi com a recessão de 2015-2016, quando o PIB caiu mais de 7%, com seu valor real de 2018 voltando ao mesmo patamar de 2011, sete anos depois.

Ao mesmo tempo, no período 2011-2014, com a intenção até certo ponto justa, a folha de pagamento sofreu aumentos muito além da capacidade financeira do Estado, com reajustes que se estenderam até o final do governo seguinte (2018) para algumas categorias, de forma que a folha de pagamentos pulou de R$ 13,4 bilhões em 2010 para R$ 29,2 bilhões em 2018, num crescimento nominal de 118%, quando a receita cresceu 81% e a inflação 61%.

E o pior de tudo é que foram concedidos esses reajustes contando com os recursos finitos dos depósitos judiciais. Foram criadas despesas permanentes para serem custeadas com recursos finitos, contrariando um dos princípios basilares de responsabilidade fiscal, expressos na própria lei pertinente.

E, diga-se passagem, entre 2015 e 2018 não houve reajustes, o que levou a grande arrocho na folha da Educação e um grande aumento na da Segurança Pública. Esta correspondia a 70% da primeira em dezembro de 2014, passando para mais de 130% em igual mês de 2018.

Durante todo esse período, sacaram do caixa único, com grande participação dos depósitos judiciais, mais de R$ 28 bilhões em valores atualizados. Em 1998, os déficits que ficaram evidentes com o fim da inflação foram financiados por recursos de privatização e, no período 1999-2002, pela venda de bens e direitos, além do caixa único. A partir de então os déficits foram financiados com recursos do caixa único e dos depósitos judiciais e com alguma venda de bens patrimoniais. Houve também aumento das alíquotas de ICMS, em 2005-2006  e em 2016-2020, antecipações de arrecadação de impostos  e pagamento do 13º salário por intermédio do Banrisul,  entre  outras ações.

O déficit previdenciário cresceu 5,4% ao ano desde 2004, em termos reais. A receita corrente líquida (RCL), que, deveria ser o limite, cresceu 3,6%. Isso, no longo prazo, é insustentável. É como caminhar sobre uma grama, primeiro fica uma leve marcação, depois um rastro e,  com o  passar do tempo, forma uma vala. A necessidade de financiamento da previdência, ou seja, déficit mais contribuição patronal, foi R$ 14,1 bilhões em 2018, ou 35,3% da RCL, ela que fora de 30% em 2004

A folha de pagamento do Estado, no critério adotado neste texto, supera 73% da RCL, mas pode chegar próximo a 80% por outros critérios. O limite da LRF é 60%, mas uma série de interpretações do Tribunal de Contas deixou esse percentual bem menor, por retirar de seu cômputo uma série de itens, entre eles as pensões por morte.

2. Análise de alguns aspectos da proposta

A proposta do governo estadual, visando a redução da folha de pagamento, age em duas frentes: a redução das vantagens funcionais e nas regras previdenciárias. Como o primeiro fator se reflete no segundo, está certo que o problema seja enfrentado nos dois aspectos

2.a Redução de vantagens funcionais

Na realidade, o Estado do RS mantém algumas vantagens que na União fazem parte do passado. Foi o caso da extinção recente da licença-prêmio que, para ser extinta, precisou ser substituída pela licença de capacitação e, ainda, vai continuar existindo durante a vigência do quinquênio em curso, que poderá se estender ainda por mais cinco anos para quem ingressar ou começar nova contagem na data da edição da lei.

As pessoas de um modo geral e até os servidores mais qualificados não se aperceberam de que o crescimento da receita corrente líquida (RCL) deve ser o limite do crescimento da despesa, devendo este ser ainda menor do que o primeiro, para possibilitar a redução do déficit.

E o crescimento da RCL no longo prazo, desde que não haja aumento de impostos ou algum fator eventual depende do crescimento da economia, que é expresso na variação do PIB.

E o crescimento do PIB depende do crescimento da população e da produtividade dos fatores. O crescimento da população é reduzido e tende a estagnar e até ficar negativo. E a produtividade dos fatores depende de mais capital que, por sua vez, depende de mais poupança e tecnologia. A poupança no Brasil é reduzida e o desenvolvimento tecnológico depende muito da educação, que não anda nada bem.

Nos últimos 20 anos, a taxa anual de crescimento do PIB nacional foi de 2,3% e o do Estado do RS ainda menor, de apenas 1,8%. O crescimento da receita, sendo um reflexo disso, deixa evidente a dificuldade que terão os governos para atender seus compromissos.

O aumento da carga tributária encontra o limite da capacidade contributiva das pessoas e de sua vontade em pagar mais impostos. É claro que sempre haverá como reduzir as desonerações fiscais, mas isso pode ter consequências. Os ressarcimentos da Lei Kandir, além da barreira do grande déficit fiscal na União, têm sua constitucionalidade questionável (art.91, § 2º das DT da Constituição federal). A volta da incidência do ICMS seria uma saída melhor, mas pode implicar na competitividade das exportações.

Poderia se dizer que influiu muito nesse baixo crescimento a recessão econômica de 2015-2016 e o período de baixo crescimento da economia que se seguiu, o que é verdade. Mas também é verdade que entre 2002 e 2011 o índice de preço das exportações apresentou inédito crescimento de 173%, ele que havia caído 23% entre 1997 e 2002 (Giambiagi, Fábio e Castelar Pinheiro, Armando, em Além da Euforia, p.255). Isso foi reflexo do que ficou conhecido como “boom das commodities”, que proporcionou grande crescimento do PIB e da arrecadação tributária em geral.

E o grande fator de crescimento da despesa pública é o chamado crescimento vegetativo da folha, em que no Estado do RS, considerando as vantagens funcionais e os encargos atuais da previdência, supera 3% ao ano. Só a previdência vem sendo de 5%. A taxa menor do crescimento total deve-se à redução do número de servidores ativos, com enormes reflexos negativos na prestação dos serviços públicos. Na Segurança Pública, por exemplo, os cargos vagos estão em 50% dos previstos em lei.

Diante disso, o governo age acertadamente em propor a eliminação dos triênios adicionais e das incorporações de funções gratificadas na aposentadoria. É duro dizer isso, porque eu, como servidor aposentado, recebo todas essas vantagens, mas são rescaldos de um tempo que passou e não voltará mais.

Da mesma forma, o quadro do magistério precisa ser modificado, até para o bem dos próprios professores. Esse assunto é tratado adiante, no item próprio.

2.b. Regras previdenciárias

A reforma da previdência é indispensável, não só pela transição demográfica, com o consequente envelhecimento da população, como pela redução da razão ativo/inativo, que deveria ser 4/1 e está em apenas 0,7/1. Com isso, o desequilíbrio é enorme, conforme citado, no entanto, há ideias contrárias a ela.

Já ouvi manifestação da oposição dizendo que se atacassem primeiro os altos salários, seriam a favor das mudanças. Mas, isso faz parte do discurso fácil, porque a maioria dos altos salários está nos outros Poderes e protegidos pela garantia constitucional da irredutibilidade. Eles detêm 7,3% da quantidade de servidores e 18,5% do valor da folha estadual. Há também altos salários em outros órgãos do Poder Executivo, como PGE, Secretaria da Fazenda, da Segurança, mas em menor quantidade.

O que poderia ser feito é o aumento da contribuição, que está sendo proposto, de forma progressiva, com alíquotas de 18% para as remunerações acima de R$ 20.000,00, para todos os Poderes. Mas a incidência para os aposentados na hipótese da existência de déficit atuarial pode ocorrer a partir de um salário mínimo. Isso, sim, pesa para os menos aquinhoados.

Mas o grande impasse está na Educação e na Segurança, por sua importância social e pelo peso de ambas na despesa total com previdência. Nelas estão 86% dos servidores aposentados, com os quais é despendido 75% da folha estadual. Vejamos cada um dos casos:

b.1) Educação

Na Educação estão 66% dos servidores do Estado, recebendo 35% da folha. Aqui já se nota uma grande desigualdade funcional. A Educação tem o mais baixo salário médio do Estado, mas tem o mais alto grau de inativação, de 70%. No plano de carreira, para cada R$ 100 pagos a quem está na ativa, são despendidos 250 entre aposentadorias e pensões. Em outros termos, para cada R$ 100 da folha, sobra somente R$ 30 para quem está na ativa.

O quadro de carreira do magistério também produz acréscimos que no longo prazo, em decorrência da integralidade e da paridade (paga mais de 2 para um trabalhar) multiplica por 7 o piso inicial aplicado ao nível médio, onde, por lei, deve incidir o piso nacional do magistério.

No tocante à aposentadoria, o projeto em causa, seguindo a reforma federal, deve aumentar a idade mínima dos professores de 55 para 60 anos e a da professora, de 50 para 57 anos. Mas, há vários anos para a transição. E isso vale para os que ingressaram após o final de 2003, porque os que ingressaram antes estão protegidos pela integralidade e paridade. Portanto, ainda há cerca de dez ou mais anos com geração de aposentadoria sob esse critério.

Então, precisa ser modificado o quadro de carreira e as regras de aposentadoria, mas é difícil defender isso, quando um soldado ao ingressar recebe uma remuneração maior do que um professor em final de carreira. Nada contra o soldado, mas a verdade é que o professor deveria ganhar mais.

No entanto, se não forem alterados o quadro de pessoal e as regras de aposentadoria a situação será cada vez pior.

b.2) Segurança Pública

A Secretaria de Segurança possui 20% dos servidores estaduais, recebendo 40% do total da folha. Se mantidas as regras federais os servidores civis se aposentarão com a idade mínima de 55 anos, com 30 de contribuição e 25 no cargo. Foi um progresso em relação ao que era antes, quando não havia exigência de idade mínima, mesmo assim, ainda ficou precoce.

No tocante aos policiais militares, cuja folha é 70% da folha da Segurança, tudo indica que manterão a integralidade e paridade com os ativos. Isso representa um encargo difícil de suportar, diante do valor dessa folha, que corresponde a 28% da folha da Administração Direta do Estado, porque, conforme citado acima, serão pagos de forma permanente dois ou mais para um trabalhar.

O resultado disso será a dificuldade cada vez maior de equilibrar as contas estaduais e o preenchimento insuficiente dos cargos, cuja metade já está vaga, com graves prejuízos à segurança.

3. Conclusão

O Estado do RS não tem outra saída que não seja a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF), só que dificilmente no final de três anos (sem pagar a dívida com a União) e de mais três (pagando a metade), terá condições de assumir a integralidade das prestações que estão suspensas por liminar. Mais do que isso, o Estado terá muita dificuldade para aderir ao citado Regime, pela dificuldade de provar que terá viabilidade financeira ao findar os prazos citados.

Se tivermos que pagar a dívida, segundo o orçamento para 2020, o déficit será de R$ 5,3 bilhões. A partir de 2021, as alíquotas do ICMS voltam aos patamares de antes da majoração feita a partir de 2016, reduzindo a arrecadação líquida em 2,5 bilhões. Isso mostra que o déficit potencial do Estado está próximo a R$ 8 bilhões, sem contar as dívidas de curtíssimo prazo, de mais de duas folhas de pagamento do Executivo, se incluirmos o 13° salário, a dívida com municípios relativa à saúde, e os precatórios, cujo pagamento foi reduzido também por medida liminar.

As medidas propostas, segundo cálculos do próprio governo estadual, se todas forem aprovadas, poderão reduzir a despesa em torno de R$ 2,5 bilhões anuais, na média. O restante terá que vir do aumento da arrecadação que só pode advir do crescimento econômico, que num primeiro momento pode ser ajudado pela capacidade ociosa da economia, que está estagnada.

Mas, dificilmente o Estado fará superávit primário para pagar a dívida, nem que o Governo Federal resolva zerar os juros, cobrando apenas o principal. Abusamos demais nos déficits sistemáticos, criamos despesas permanentes muito além do possível crescimento da receita e a situação ficou insustentável.

Somente um grande ajuste na despesa, acompanhado de enorme crescimento econômico podem nos tirar da crise, ou então teremos que esperar pela pior das soluções que, para o bem da maioria, não deverá ocorrer: a volta da inflação.de dois dígitos.

Porto Alegre, 18 de novembro de 2019.

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