Gestão conservadora e retórica de esquerda: os três anos do governo Olívio

A retórica e a ideologia no jogo político, muitas vezes, servem para falsificar a realidade. A imagem autoconstruída em torno do Governo Olívio não foge a essa regra. Uma análise fria de seus três anos irá perceber que, sob o manto de uma retórica de esquerda que se apropria indevidamente da simbologia das mudanças, está em curso no Rio Grande do Sul um projeto em muitos aspectos conservador, na medida em que remonta a algumas das relações mais danosas entre Estado e sociedade presentes na tradição brasileira. A essência do projeto do Governo Olívio é o controle do partido sobre a sociedade através da utilização das estruturas do Estado. Sua gestão não foi marcada pela transformação da máquina pública estadual, mas, inversamente, pela retomada e pelo fortalecimento de práticas típicas de um Estado neopatrimonialista.

O atraso econômico e o autoritarismo político que marcam a história do País se devem, em grande parte, aos traços neopatrimonialistas e mercantilistas presentes na formação do Estado brasileiro. Suas grandes características são o contraste entre uma burocracia estatal forte, tão poderosa quanto ineficiente, que se move orientada, em primeiro lugar, pelo interesse de sua própria sobrevivência, e uma sociedade altamente regulada e submissa ao poder do Estado. Schwartzman, ao descrever essa tradição burocrática despótica, afirma que “(…) do imperador sábio D. Pedro I aos militares da Escola Superior de Guerra, passando pelos positivistas do Sul e os tecnocratas do Estado Novo, nossos governantes tendem a achar que tudo sabem, tudo podem, e não têm na realidade que dar muitas atenções às formalidades da lei”1. A definição de Schwartzman cabe como uma luva para o Governo Olívio, que não foge a esse traço comportamental autoritário e arrogante, tradicional dos governantes brasileiros.

No plano político, a grande marca dos três anos deste governo foi a sua absoluta incapacidade, ou falta de vontade, para negociar, transigir e costurar maiorias na Assembléia Legislativa. Pelo contrário, a sua aposta permanente foi o confronto. Um governo de enfrentamento, jamais de interlocução. O resultado dessa estreiteza é que, hoje, a base de apoio do Governo é menor do que era no início do mandato de Olívio Dutra. Essa aposta indica uma postura messiânica de quem se acha o único portador da verdade e deixa claro uma relação mal-resolvida do PT que governa o RS com a democracia. Com o fim do regime militar, uma das grandes conquistas da democracia brasileira foi o imperativo colocado para os governantes de ter de negociar e dialogar para compor maiorias no Legislativo e viabilizar suas agendas. Esse é um antídoto contra o surgimento de novos caudilhos de vocação autoritária (o último que surgiu, aliás, não conseguiu terminar o seu mandato). No entanto, o que vimos no Rio Grande do Sul nos últimos três anos foi o recurso a um velho plebiscitarismo populista, que tão mal fez à democracia brasileira. Ao invés de apostar no diálogo, o Governador se autoproclamou o porta-voz do que é “socialmente justo”, recorrendo, quando necessário, à pressão contra o parlamento para tentar viabilizar seus projetos.

A política de educação do Governo Olívio também foi um instrumento privilegiado de sua estratégia de controle e cooptação da sociedade pelo partido. A mobilização de escolas para assembléias do Orçamento Participativo e a ideologização dos concursos para professor na rede pública estadual mostram que o ensino, na ótica do Governo, não foi tratado como uma ferramenta que permite a inclusão social via construção da autonomia e do preparo intelectual dos estudantes. Ao contrário, as escolas estaduais correm o risco de se transformar, lamentavelmente, em um palco de luta política, no qual os estudantes não aprendem a “pensar”, mas sim “em quem votar”. Uma política de educação muito parecida com a do regime militar, só que com o sinal ideológico invertido.

O resgate do neopatrimonialismo no Governo Olívio fica mais nítido, no entanto, quando analisamos sua política econômica, sua vocação fiscalista e a ausência de uma estratégia de reforma e de modernização da máquina pública. A grande marca da construção do Estado neopatrimonialista no Brasil foi o seu esforço em cooptar os agentes econômicos, mantê-los dependentes dos favores e sob o controle do governo e, ao mesmo tempo, jogar o pesado custo financeiro da manutenção de uma máquina pública ineficiente sobre os ombros da sociedade. O controle sobre os agentes econômicos e a escolha do sacrifício da sociedade via impostos como via de mão única para enfrentar o déficit público são as marcas mais fortes e significativas do projeto do Governo Olívio.

No plano econômico, dessa forma, o Governo Estadual abandonou a opção pelo desenvolvimento econômico, centrando sua ação administrativa no discurso do equilíbrio fiscal, combinada a uma enorme aversão à administração científica e ao mercado. Até agora, os resultados de sua política fiscal têm sido pífios. A política fiscal é tímida, gradual e sem inspiração, de orientação ortodoxa, uma variante de política feijão-comarroz. O “Estado mínimo” chegou ao RS não como fruto de uma opção política, mas simplesmente porque o Estado foi paralisado: os serviços públicos baixaram de qualidade, os investimentos públicos e privados decaíram, e os vencimentos dos servidores públicos foram arrochados.

Essa é uma das contradições básicas do modelo econômico do Governo Olívio. Ao enfatizar a função distributiva do Estado, sua política acaba sendo invariavelmente fiscalista, centrada quase exclusivamente no aumento de impostos. Essa ênfase no distributivismo entra em permanente contradição com a função alocativa do Estado, já que não há preocupação com dinamizar as forças do mercado e se colocam empecilhos aos investimentos privados, reduzindo as possibilidades de produção da economia local (vejamse os casos da Ford, da Goodyear e da TVR). Tudo isso é reflexo de um governo ideologicamente avesso à acumulação de capital e ao lucro privado, como foi, aliás, explícita e publicamente assumido pelo próprio Governador do Estado. Um preconceito contra o lucro privado que também faz parte da tradição brasileira.

A atual administração aderiu à política de disciplina fiscal por falta de inspiração e por pragmatismo. Para chegar ao poder, fez promessas populistas, onde o que menos importava era sua factibilidade ou a gestão eficaz da crise do Estado. Uma vez no poder, não conseguiu apresentar, até hoje, um projeto econômico viável para um estado estruturalmente em crise, repetindo exatamente o que outros partidos tradicionais fizeram no passado. Até agora, a gestão financeira do Estado resume-se a manter os salários em dia e a deixar de executar a peça orçamentária aprovada pela Assembléia.

Do ponto de vista orçamentário, a única novidade trazida pelo Governo Olívio foi a forma de financiamento dos déficits orçamentários de 1999-01. Inaugurou-se a fase da gestão temerária dos recursos públicos, sendo o déficit público estadual financiado, de forma indevida, através da utilização de recursos vinculados do Sistema Integrado de Caixa Único (SIAC), de onde foi retirado, até out./01, a importância de R$ 1,2 bilhão.

Hoje, alguns dos resultados mais notáveis dessa política são o expurgo da Ford e de outras empresas; o sucateamento do patrimônio financeiro do Estado; o maior arrocho salarial dos últimos 14 anos das finanças públicas estaduais; o menor nível de investimento público de todos os governos desde 1970; o menor percentual de cobrança da dívida ativa desde 1991; a redução drástica dos investimentos em segurança pública; o saque irregular do Caixa Único de mais de R$ 1,2 bilhão; o desvio de recursos vinculados à área social para pagar pessoal e dívida; isso tudo sem falar na tutela exercida sobre as entidades sindicais – como o CPERS – e no esvaziamento de sua autonomia e de suas reivindicações.

Os mentores do Governo Olívio parecem não perceber uma distinção básica, mas fundamental, para a qual a moderna esquerda européia está atenta: a distinção entre um Estado poderoso, hipertrofiado, caro e, por isso mesmo, inoperante, e um governo eficiente, dinâmico, capaz de interagir com a sociedade e os agentes econômicos, de induzir e fomentar alternativas para correção de desigualdades sociais. Um governo eficiente atende ao cidadão, enquanto um Estado poderoso controla o cidadão.

A aposta da atual administração do RS tem sido reconstruir um Estado forte e poderoso, que possa servir de instrumento de controle do partido sobre a sociedade. Exatamente por isso, todos os indicadores de desempenho e eficiência mostram que o Governo Olívio é um não-governo e que, por trás de sua retórica transformadora, é, na realidade, completamente deficitário nas demandas que realmente importam ao cidadão.

1 Schwartzman, Simon. As Bases do Autoritarismo Brasileiro. Rio de Janeiro, Editora Campus, p. 14

CALAZANS, Roberto B. Gestão Conservadora e Retórica de Esquerda: Os Três Anos do Governo Olívio. Finanças em Linha. Sindicato dos Auditores de Finanças Públicas do RS. n.º 18, dez/01 e jan/fev-02. Porto Alegre/RS. Disponível na Internet via WWW http://www.sindaf.com.br/artigos técnicos.

 

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